segunda-feira, 29 de julho de 2013

Da mobilidade especial

Gino Severini - Automóvil a la carrera (1912-1913)

Não é que as sociedades tradicionais fossem imóveis e imutáveis, mas a imutabilidade e a imobilidade eram os princípios ordenadores e que davam sentido à existência social. Na impossibilidade de repousar eternamente no princípio imutável, essas sociedades organizavam o ciclo da vida segundo uma forma de mutação que espelhava o imutável, por exemplo, o ciclo anual visto como um eterno retorno do mesmo. A metafísica platónica racionaliza esse impulso e eterniza no mundo das Ideias essa aspiração à permanência.

A modernidade vai subverter esta visão do mundo. Há um primeiro momento onde o culto dos antigos - o modelo greco-latino - ainda disfarçou a novidade, mas a partir da Querela dos Antigos e dos Modernos (iniciada em 1687) torna-se claro que os modelos fornecidos pela tradição são abandonados e que o passado - que era uma espécie de ponte para o imutável - deixou de ser o foco orientador da acção dos homens modernos. Os séculos XVIII e XIX consagram a ideia de progresso - o moral e o material - e orientam a visão do homem para o futuro, para o bem que há-de vir. O século XX aniquilou a ideia de progresso moral, mas a evolução tecnológica tornou-se absolutamente avassaladora.

Em todo este movimento, o que está em jogo é a mobilidade e a mutabilidade. A sociedade torna-se móvel e a velocidade da mudança ou da deslocação no espaço incrementa-se continuamente. O Estado-nação, apesar de tere um papel central na produção do novo modelo de sociedade, continha em si muitos elementos tradicionais e vinculados à ideia de imobilidade e de imutabilidade. As burocracias estatais e os corpos de funcionários públicos, os grandes agentes da modernização contínua da sociedade em conjugação com a ciência moderna e a empresa capitalista, eram imóveis e imutáveis, tanto quanto isso era possível. E é isso que agora está a ser posto em causa com a lei da mobilidade especial dos funcionários públicos portugueses.

O que se está a passar não é apenas um problema ideológico - embora também o seja -, mas o desenvolvimento lógico de uma ideia central do projecto da modernidade: a realização da pura mobilidade de todos os elementos sociais, o desenvolvimento de redes continuamente mutáveis. O dilema que se coloca na interpretação destes acontecimentos prende-se com as consequências da introdução da mobilidade no seio dos corpos imutáveis e imóveis da burocracia estatal e do funcionalismo público: significará esta mobilidade, visto que esses corpos foram e ainda são agentes de modernização, o fim do projecto da modernidade, ou estamos perante um novo momento do desenvolvimento do projecto moderno que dispensa ele mesmo os corpos imutáveis e imóveis que o ajudaram a vir à luz? Estaremos perante novo sintoma de uma pós-modernidade ou assistimos apenas à radicalização da modernidade? Esta querela arrasta-se já há alguns decénios, mas o ataque à imobilidade e à imutabilidade dentro do Estado é um elemento que, não sendo novo, tem um pesado significado no destino das nossas sociedades e do projecto da modernidade.

8 comentários:

  1. Olá Professor, ouvi dizer que Portugal passa por reformas educacionais. Queria saber do senhor sua opinião sobre essas reformas educacionais. Fique à votnade para responder por aqui ou enviar para o meu e-mail: solidadesantos@gmail.com Fico grata pela atenção. Abraço daqui(Fortaleza-Ce). Solidade

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caríssima Solidade Santos,

      Desde que sou professor que Portugal se encontra sob reformas educacionais. Não há ministro - e tem havido muitos - que não mude qualquer coisa no sistema, que não seja reformista. O actual não é diferente dos outros. No entanto, o que ele faz é aumentar o número de alunos por turma, diminuir o número de horas lectivas para algumas disciplinas, favorecer as escolas privadas em detrimento das públicas (há agora uma grande polémica em algumas regiões onde isso parece ter sido mais claro). O essencial das actuais reformas é pôr em causa o ensino público, diminuir-lhe a qualidade, pôr em causa os professores do ensino público. As reformas actuais - se é que podem ter esse nome - inscrevem-se num programa de destruição do nosso ensino público. São movidas por uma ideologia contrária aos serviços públicos e assentam em preconceitos sobre a pedagogia, o desempenho dos alunos e dos professores. Pretendem abrir caminho para a privatização do ensino (isto é, entregar o dinheiro público a escolas privadas em nome de uma suposta concorrência).

      Não sei se era disto que estava à espera, mas é isto que nós, professores portugueses do ensino público, estamos a enfrentar.

      Abraço

      Eliminar
    2. Prezado prof. Jorge,

      Muito, muito obrigada pelos esclarecimentos.
      Como professor e intelectual o senhor deve saber da nossa realidade aqui no Brasil. Abraço e eu gosto muito de lê-lo.
      Solidade

      Eliminar
  2. Nem de propósito, Jorge... Hoje recebi uma sms (se bem que um simpático telefonema de um colega antes, na mesma situação)a dizer que não tenho componente letiva e que devo concorrer à mobilidade interna. Sou efetiva no quadro da escola onde lecionava desde há 4 anos, tenho bastantes anos de ensino, e neste momento, imagine-se, há apenas uma docente de inglês com horário na escola, eu sou a segunda. Tudo isto por causa do despacho de sexta feira, feito e enviado pela calada, apanhando as pessoas de férias (agora)e causando um mal estar geral nas escolas, entre quem gere e quem é gerido. Nada do que parecia seguro o é, mais. Chegou a mim, agora vou concorrer e não há lugares. Ou repescam-me depois ou não sei, é nova esta situação para mim. Pela primeira vez não concorri voluntariamente, estou congelada desde 2004, sim, 2004, fartei-me de trabalhar e obtive classificação alta, altíssima, na avaliação que toda a opinião pública reclamava e agora?? O que valeu isso tudo? Desilusão e revolta. Escumalha nojenta, a que nos desgoverna. Uma ataque total à escola e ao funcionalismo público. E aposto que há quem esteja contente... Vão todos mas é dar uma grande volta ao bilhar grande. Desculpe, Jorge, esta é a sua casa. Espero que me compreenda. Tristeza de férias, e eu não sou das que está pior...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Meu Deus. O ministro apanhou os professores de férias e vingou-se. Sim, tem toda a razão. Ninguém está seguro e estamos perante um ataque sem precedentes à escola pública e aos professores. Quando escrevi o post já sabia o que se estava a passar. Só espero que corra tudo bem consigo, que um módico de decência possa atingir o MEC e evitar esta hecatombe. Nem sei o que lhe possa dizer, a si e a todos os que foram apanhados na ratoeira do roubo de alunos e turmas às escolas públicas. E isto pode acontecer a qualquer um, seja qual for o lugar que ocupe no quadro. Puro terrorismo.

      Um abraço

      Eliminar
  3. Como não sou professor não consigo apreender na devida dimensão o que se está a passar, mas, enquanto cidadão, não tenho duvidas em afirmar que estamos perante um atentado desta cambada de governantes indecentes aos docentes.

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não é só aos docentes, mas a todos os que trabalham, tanto no serviço público como nas empresas privadas. Relativamente aos professores, há toda uma estratégia para entregar a escola pública a "empresas" privadas, que tirarão lucro dos dinheiros públicos que serão subtraídos aos professores. A coisa é mais simples do que parece. Há muita gente desejosa de pôr a mão no orçamento da educação.

      Abraço

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.