Léonard Misonne, Au Coucher du Soleil, 1900 |
quarta-feira, 30 de agosto de 2023
Ensaio sobre a luz (106)
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Cardílio (24 sonetos) 23
Anónimo romano, Mosaico de Alejandro en Issos |
Dois mil anos. Seremos de
amanhã
As ruínas, traídos pelo voo
Do corvo, pelas árvores
cansadas
Do jardim. Haverá na forte seiva
Um fragmento do olhar, a voraz
célula
No cerne a morte tem anunciada.
Cardílio, de ti irmão sempre
serei
Na planície de pó, nas águas
rasas
Do Inverno, do rio para o mar
correm.
Será a aurora negra em cada dia
E na espuma das horas ouviremos
O lamento dos pássaros de
Apolo,
Belo na agonia próxima, ditoso,
sábado, 26 de agosto de 2023
Ainda a visita do Papa Francisco
Se olharmos para o arco constitucional dos países democráticos da Europa, encontramos três grandes famílias ideológicas. O conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Os conservadores, apesar da sua pluralidade, enfatizam a estabilidade e a continuidade das instituições, e se queremos encontrar um conceito para definir essa ideologia será o de tradição. Os liberais, que existem tanto na direita como na esquerda, defendem um conjunto de valores políticos e morais, onde se inclui a democracia e a importância do indivíduo. O conceito central desta corrente é o de liberdade. Por fim, os socialistas, que vão desde os velhos sociais-democratas até aos comunistas, têm, com diferentes intensidades, preocupações sociais. A ideia nuclear será a de igualdade. Em resumo, as principais correntes ideológicas do arco constitucional giram em torno da tradição, da liberdade e da igualdade.
Os três
conceitos, porém, emergem na Igreja Católica e são inerentes à sua própria
natureza. A tradição apostólica, que estabelece uma conexão entre Cristo e os
crentes actuais. A liberdade dos homens, pois são dotados de livre-arbítrio,
isto é, de capacidade de escolha, como ensinou Santo Agostinho, e a igualdade de
todos os seres humanos perante Deus. São estas três ideias constitutivas do Cristianismo
originário que, com a implosão da Igreja, após a Reforma protestante e o
advento do Iluminismo, se emancipam do domínio da religião e são apropriadas
pelo mundo da política. Em todas as três principais ideologias políticas do
arco constitucional ressoa ainda, de algum modo, a voz do Cristianismo e da
Igreja Católica. Não admira, assim, que, em certas circunstâncias, pareça existir
o milagre de um grande consenso. O actual Papa tem uma grande capacidade de
fazer pontes, mas isso deve-se, também, ao papel que o Cristianismo teve e tem
ainda na modelação das nossas sociedades e das nossas crenças políticas.
quinta-feira, 24 de agosto de 2023
Meditações melancólicas (92) Nadar com costa à vista
Carlo Carra, Nuotatori, 1929 |
terça-feira, 22 de agosto de 2023
Nocturnos 106
Emil Nolde, Dark Landscape (North Friesland) |
domingo, 20 de agosto de 2023
Simulacros e simulações (54)
Elliott Erwitt, Paris, 1949 |
sexta-feira, 18 de agosto de 2023
Cardílio (24 sonetos) 22
Anónimo romano, Fresco que representa un jardín, Casa de Livia, Roma |
Desceram nesta terra como
pássaros
Presos ao horizonte. Não
traziam
Asas, nem aprendiam a cantar
Canções de amor e guerra. Desejavam
A luz entontecida das manhãs,
Os animais bravios a galopar,
O crime delicado do perfume
Das esquivas mulheres pela cama
Derrubadas. Do pó livre de
Itália
Vieram, as cidades por fazer
Chamavam-nos em sonhos de
cristal.
Na alba, extasiados pelo Estio,
Caíram no recôndito murmúrio
Da seara de seda a germinar.
2007
quarta-feira, 16 de agosto de 2023
Beatitudes (62) À beira do lago
William B. Post, Summer days, 1895 |
segunda-feira, 14 de agosto de 2023
O progresso moral da humanidade (12)
Alfred Stieglitz, The Hand of Man, 1902 |
sábado, 12 de agosto de 2023
O Estado e a Igreja, a propósito das JMJ
Não estou certo de que as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), realizadas em Portugal, tenham sido uma afirmação da Igreja portuguesa. Estou convicto, porém, de que foram um poderoso revelador da existência, no país, de uma corrente radical jacobina fortemente aguerrida, apesar de claramente minoritária. Manifestou-se em coisas estapafúrdias, como a decapitação da estátua de Santo António em Torres Novas, ou nos desabafos anticlericais e anticatólicos nas redes sociais, numa espécie de revivescência dos tempos intolerantes da primeira República. Exprimiu-se, em nome da laicidade do Estado, em coisas mais sérias como a contestação da Concordata entre Portugal e o Vaticano e a crítica ao apoio público às JMJ. Vale a pena tentar perceber se esta contestação faz sentido.
Para pensar o problema é necessário compreender que o Estado português actual nasce de duas tradições histórico-políticas. Em primeiro lugar, a tradição nacional, o facto de Portugal ter sido, na prática, uma criação da Igreja Católica. Não apenas no reconhecimento da monarquia portuguesa, mas também na ajuda fundamental dada pela Igreja no processo de reconquista cristã e mesmo de ocupação territorial. Em segundo lugar, uma tradição nascida na Europa pós-guerras religiosas, nomeadamente, nos textos do filósofo britânico John Locke (1632-1704), defende a separação entre o poder político e as instituições religiosas. Os contestatários da Concordata e do apoio à Igreja Católica defendem que as duas tradições são incompatíveis e que deve ser privilegiada a completa independência do Estado em relação à Igreja romana.
O curioso é que
na Constituição da República Portuguesa, de 1976, reconhecendo-se a liberdade
religiosa, não se afirma, ao contrário do que se passa na Constituição
francesa, em lado nenhum que o Estado português é laico. Esta estratégia
constitucional não foi uma mera manobra retórica, mas uma forma de
compatibilizar as duas tradições, aquela que vem do início da nacionalidade e a
que nasce na Europa ilustrada. Esta compatibilização assegurou, ao contrário do
tempo da primeira República, a não existência em Portugal de um problema
religioso, de um conflito entre a Igreja e as novas instituições. A democracia
portuguesa inscreve-se e desenvolve-se num equilíbrio criativo entre o reconhecimento
da importância nacional da Igreja Católica e o reconhecimento das liberdades
religiosas e de um Estado não confessional. Tanto a Concordata como, agora, o
apoio público às JMJ fazem parte desse equilíbrio criativo que está na origem
da democracia portuguesa e assegura a paz pública. Mexer nesse equilíbrio seria
abrir a caixa de Pandora.
quinta-feira, 10 de agosto de 2023
A persistência da memória (25)
Alfred Stieglitz, Watching for the Return, 1896 |
terça-feira, 8 de agosto de 2023
Cardílio (24 sonetos) 21
Júpiter Tonante en el Museo del Prado |
Sobre a paisagem, frutos
maturavam
Na lenta pulsação das velhas
árvores,
Caíam se as mãos frias lhes
tocavam.
Imóvel, regias campos e certezas.
Uma ordem ao mundo vinha,
sôfrega,
Promessa de provir na água do
tempo,
Uma canção no Estio silenciada.
Os carros foram, longe é a sua
casa,
E ninguém quer as árvores
plantadas
Nos teus jardins. Restou-te o
parco nome,
Tesselas de mosaico, dizem, ânforas
Perdidas, vidros, mármores e um
deus
Vivo na nitidez da branca
estátua.
2007
domingo, 6 de agosto de 2023
Comentários (11)
Miguel Branco, Sem Título (Pequena figura sobre fundo verde), 1999 (aqui) |
sexta-feira, 4 de agosto de 2023
Ensaio sobre a luz (105)
Antonio Tápies, Dríadas, ninfas, arpías..., 1950 |
quarta-feira, 2 de agosto de 2023
O fim da astúcia da razão
A partir de certo momento do desenvolvimento da Modernidade – do Iluminismo, para ser mais preciso – foi-se solidificando uma crença que se tornou central na Europa e nos seus prolongamentos extra-europeus. Os indivíduos, ao perseguirem os seus interesses e paixões singulares, acabariam, por uma espécie de astúcia da razão, por realizar o bem comum. A virtude não estaria na contenção do egoísmo e das paixões que este arrasta, mas na sua realização. Um empresário, por exemplo, ao perseguir os seus interesses egoístas, o seu desejo de enriquecimento e ascensão social, criaria postos de trabalho e contribuiria para o desenvolvimento da sociedade em que está inserido. O bem comum seria assim o resultado de uma manobra astuciosa da razão que utilizaria as paixões do indivíduo para realizar algo que o ultrapassa.
A grande impugnação desta ideia veio, fundamentalmente, dos movimentos operários. Contestavam o tipo de relação que a propriedade privada dos meios de produção instaura entre os homens. Os trabalhadores seriam meros instrumentos para a realização dos interesses daqueles a quem prestam serviços. O lucro destes estaria fundado na exploração daqueles. Esta clivagem alimentou parte da história social e política dos séculos XIX e XX. Nos anos setenta do século passado, o filósofo norte-americano John Rawls tenta uma ambiciosa compatibilização entre as duas perspectivas. O perseguir dos interesses e paixões privados seria legítima desde que as diferenças sociais daí resultantes beneficiassem os mais desfavorecidos. O célebre princípio da diferença de Rawls ainda se inscreve, desse modo, no esquema liberal da astúcia da razão.
Ora, nesta equação falta um dado que se tem mostrado decisivo, a Terra como habitat do homem. Parece hoje claro que o planeta não suporta a intensidade das paixões e interesses egoístas. A Terra é limitada e vive num equilíbrio frágil, que a avidez humana está a destruir a grande velocidade. Aquilo que estamos a descobrir é que a astúcia da razão se tem mostrado não como uma estratégia para gerar o bem comum, mas um modo de ocultar a destruição sistemática da possibilidade de haver um futuro para a humanidade. Contrariamente ao que se pensa a partir do Iluminismo, a virtude não estará na prossecução dos interesses e paixões privados, mas na sua limitação drástica. A virtude não estará na riqueza, ainda que justamente distribuída, mas na vida frugal. A astúcia da razão, começa-se a perceber, não passa de um feitiço que se voltou contra o feiticeiro, e que este não sabe como evitar as consequências.