quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Ensaio sobre a luz (106)

Léonard Misonne, Au Coucher du Soleil, 1900

A luz do poente resplandece no horizonte, como se o Sol buscasse o lugar onde o lume nasce e toma conta dos corpos, para que possam iluminar as terras, os homens, os animais. Por instantes, a paisagem cintila; depois, chega a noite e a esperança ardente de uma nova aurora.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Cardílio (24 sonetos) 23

Anónimo romano, Mosaico de Alejandro en Issos

Dois mil anos. Seremos de amanhã

As ruínas, traídos pelo voo

Do corvo, pelas árvores cansadas

Do jardim. Haverá na forte seiva

 

Um fragmento do olhar, a voraz célula

No cerne a morte tem anunciada.

Cardílio, de ti irmão sempre serei

Na planície de pó, nas águas rasas

 

Do Inverno, do rio para o mar correm.

Será a aurora negra em cada dia

E na espuma das horas ouviremos

 

O lamento dos pássaros de Apolo,

Belo na agonia próxima, ditoso,

Pois cedo estaremos a cantá-lo.

2007 

sábado, 26 de agosto de 2023

Ainda a visita do Papa Francisco


Com excepção de um núcleo jacobino e da liderança estarola da extrema-direita, a aceitação da visita do Papa Francisco, e do que veio dizer, foi muito ampla. Será o actual Papa um taumaturgo capaz de operar milagres e de fazer coincidir gente que, por norma, tem as mais contrárias opiniões? O carisma de Giorgio Bergoglio ajuda bastante. Papas anteriores, de perfil mais conservador, teriam dificuldades em encontrar não uma excelente recepção no país, mas uma tal unanimidade. Contudo, deverá ser na própria Igreja Católica que devemos buscar esse poder de atracção, o qual é pior ou melhor interpretado pelos seus representantes, seja no Vaticano, seja nas dioceses.

Se olharmos para o arco constitucional dos países democráticos da Europa, encontramos três grandes famílias ideológicas. O conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Os conservadores, apesar da sua pluralidade, enfatizam a estabilidade e a continuidade das instituições, e se queremos encontrar um conceito para definir essa ideologia será o de tradição. Os liberais, que existem tanto na direita como na esquerda, defendem um conjunto de valores políticos e morais, onde se inclui a democracia e a importância do indivíduo. O conceito central desta corrente é o de liberdade. Por fim, os socialistas, que vão desde os velhos sociais-democratas até aos comunistas, têm, com diferentes intensidades, preocupações sociais. A ideia nuclear será a de igualdade. Em resumo, as principais correntes ideológicas do arco constitucional giram em torno da tradição, da liberdade e da igualdade.

Os três conceitos, porém, emergem na Igreja Católica e são inerentes à sua própria natureza. A tradição apostólica, que estabelece uma conexão entre Cristo e os crentes actuais. A liberdade dos homens, pois são dotados de livre-arbítrio, isto é, de capacidade de escolha, como ensinou Santo Agostinho, e a igualdade de todos os seres humanos perante Deus. São estas três ideias constitutivas do Cristianismo originário que, com a implosão da Igreja, após a Reforma protestante e o advento do Iluminismo, se emancipam do domínio da religião e são apropriadas pelo mundo da política. Em todas as três principais ideologias políticas do arco constitucional ressoa ainda, de algum modo, a voz do Cristianismo e da Igreja Católica. Não admira, assim, que, em certas circunstâncias, pareça existir o milagre de um grande consenso. O actual Papa tem uma grande capacidade de fazer pontes, mas isso deve-se, também, ao papel que o Cristianismo teve e tem ainda na modelação das nossas sociedades e das nossas crenças políticas.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Meditações melancólicas (92) Nadar com costa à vista

Carlo Carra, Nuotatori, 1929

Há, ao nível nacional, um jogo completamente ocioso. Oiça-se o discurso da oposição – nomeadamente, a de direita – e parece que vivemos no pior dos mundos possíveis, com tudo o que há de mau na índole nacional concentrado naquela gente incapaz que nos governa. Repare-se no discurso do governo e não há nada na oposição que não seja o reflexo do que há de mau nessa mesma índole nacional, o que, se ela chegasse ao governo, haveria de nos pôr pelas ruas da amargura. Deixemos governo e oposição de lado, oiçamos os portugueses. O que dizem dos outros, mas nunca de si mesmos, é que eles, esses terríveis outros, representam o que há de mau na tal índole nacional. A índole nacional, com os seus trejeitos existenciais, as suas manobras espúrias, o seu fazer manhoso pela vida, é uma coisa extraordinária, pois só existe nos outros, que são os culpados pelo nunca suficientemente sublinhado atraso nacional. O mais extraordinário é que existimos há 900 anos, com alguns percalços, mas sabendo fazer pela vida. Se ao nascer, pelas condições geopolíticas, Portugal tinha escassas possibilidades de persistir na existência, com uma índole nacional tal como a descrevemos, já há muito deveria ter desaparecido do mapa das nações independentes. Cá continuamos. Talvez os nossos insuperáveis defeitos, onde se inclui a contínua inveja do outro e o desprezo pelos melhores, sejam as nossas virtudes, são eles que nos têm permitido sobreviver e atravessar os oceanos tempestuosas do mundo da política internacional. Somos irreformáveis, mas talvez isso seja a forma de podermos continuar a nadar com costa à vista. Existir há 900 anos deverá querer dizer alguma coisa.
 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Nocturnos 106

Emil Nolde, Dark Landscape (North Friesland)

A escuridão da paisagem anuncia a noite carregada com o mistério da tempestade. Ocultos nas casas, os homens aguardam que o negro do horizonte se abra na cintilação do relâmpago e no vociferar do trovão, para que tudo volto ao equilíbrio do dia-a-dia e o sono possa encontrar o caminho que levará ao porto da aurora.

domingo, 20 de agosto de 2023

Simulacros e simulações (54)

Elliott Erwitt, Paris, 1949

Como um efeito de contágio. A alegria ou a tristeza, o medo ou a esperança, todos esses sentimentos que animam os indivíduos, que com eles tecem o mundo da vida, nascem como nasce uma epidemia. Um agente desencadeador e depois cadeias de transmissão. Alguém simula a alegria, mesmo que sob a máscara esconda a tristeza, e a alegria toma conta da paisagem. Ao sorriso responde o sorriso, à dor responde a dor. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Cardílio (24 sonetos) 22

Anónimo romano, Fresco que representa un jardín, Casa de Livia, Roma

Desceram nesta terra como pássaros

Presos ao horizonte. Não traziam

Asas, nem aprendiam a cantar

Canções de amor e guerra. Desejavam

 

A luz entontecida das manhãs,

Os animais bravios a galopar,

O crime delicado do perfume

Das esquivas mulheres pela cama

 

Derrubadas. Do pó livre de Itália

Vieram, as cidades por fazer

Chamavam-nos em sonhos de cristal.

 

Na alba, extasiados pelo Estio,

Caíram no recôndito murmúrio

Da seara de seda a germinar.


2007

 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Beatitudes (62) À beira do lago

William B. Post, Summer days, 1895

Imaginemos a felicidade não como a realização dos nossos desejos, tão contrários eles são, mas como um poisar ao de leve sobre a terra dura da vida. O controlo da gravidade, a possibilidade de levitar sobre a realidade, a experiência de vogar nas águas tranquilas de um lago, isso traz a marca dos dias felizes, contém a esperança sempre adiada de uma vida autêntica, arrasta, na sua esteira, a promessa de que esse Estio à beira da água será eterno.
 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

O progresso moral da humanidade (12)

Alfred Stieglitz, The Hand of Man, 1902

A locomotiva a vapor pode ser a imagem de marca de uma época que vai das primeiras décadas do século XIX até meados do século XX. Porém, é muito mais do que isso. É um símbolo do momento em que se separam na história do homem duas ideias de progresso, a do progresso material e a do progresso moral da humanidade. As vantagens materiais trazidas pela nova modalidade de deslocamento sobrepuseram-se ao dever moral de cuidar do planeta, de cuidar a casa comum. Mesmo nos dias de hoje, apesar da locomotiva a vapor ser há muito um objecto museológico, ela continua, sob a forma de mil disfarces, a atravessar, soberba e ufana, as paisagens, deixando atrás de si um rasto negro e uma promessa de destruição.

sábado, 12 de agosto de 2023

O Estado e a Igreja, a propósito das JMJ

Não estou certo de que as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), realizadas em Portugal, tenham sido uma afirmação da Igreja portuguesa. Estou convicto, porém, de que foram um poderoso revelador da existência, no país, de uma corrente radical jacobina fortemente aguerrida, apesar de claramente minoritária. Manifestou-se em coisas estapafúrdias, como a decapitação da estátua de Santo António em Torres Novas, ou nos desabafos anticlericais e anticatólicos nas redes sociais, numa espécie de revivescência dos tempos intolerantes da primeira República. Exprimiu-se, em nome da laicidade do Estado, em coisas mais sérias como a contestação da Concordata entre Portugal e o Vaticano e a crítica ao apoio público às JMJ. Vale a pena tentar perceber se esta contestação faz sentido.

Para pensar o problema é necessário compreender que o Estado português actual nasce de duas tradições histórico-políticas. Em primeiro lugar, a tradição nacional, o facto de Portugal ter sido, na prática, uma criação da Igreja Católica. Não apenas no reconhecimento da monarquia portuguesa, mas também na ajuda fundamental dada pela Igreja no processo de reconquista cristã e mesmo de ocupação territorial. Em segundo lugar, uma tradição nascida na Europa pós-guerras religiosas, nomeadamente, nos textos do filósofo britânico John Locke (1632-1704), defende a separação entre o poder político e as instituições religiosas. Os contestatários da Concordata e do apoio à Igreja Católica defendem que as duas tradições são incompatíveis e que deve ser privilegiada a completa independência do Estado em relação à Igreja romana.

O curioso é que na Constituição da República Portuguesa, de 1976, reconhecendo-se a liberdade religiosa, não se afirma, ao contrário do que se passa na Constituição francesa, em lado nenhum que o Estado português é laico. Esta estratégia constitucional não foi uma mera manobra retórica, mas uma forma de compatibilizar as duas tradições, aquela que vem do início da nacionalidade e a que nasce na Europa ilustrada. Esta compatibilização assegurou, ao contrário do tempo da primeira República, a não existência em Portugal de um problema religioso, de um conflito entre a Igreja e as novas instituições. A democracia portuguesa inscreve-se e desenvolve-se num equilíbrio criativo entre o reconhecimento da importância nacional da Igreja Católica e o reconhecimento das liberdades religiosas e de um Estado não confessional. Tanto a Concordata como, agora, o apoio público às JMJ fazem parte desse equilíbrio criativo que está na origem da democracia portuguesa e assegura a paz pública. Mexer nesse equilíbrio seria abrir a caixa de Pandora.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

A persistência da memória (25)

Alfred Stieglitz, Watching for the Return, 1896

A configuração dos lugares, o modo como as pessoas se vestem, até a forma como utilizam a linguagem e dispõem os gestos, tudo isso pode estar submetido a uma invariável lei da metamorfose, que, ao olhar superficial, faz perceber um mundo composto por contínuas e radicais mudanças, como se o passado fosse sempre um país estrangeiro. Se o olhar se demora e se a memória se cultiva, então descobre-se que, para além do que se altera, existem padrões que não variam. Esperar o regresso dos que partiram, cultivar no coração a ânsia para que quem se ausentou volte são e salvo, suportar a demora da chegada, tudo isso está inscrito numa memória que vem de longe, de muito longe, e que persiste para além, muito para além, dos acidentes que geram a ilusão da mudança e a fantasia da metamorfose.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Cardílio (24 sonetos) 21

Júpiter Tonante en el Museo del Prado

Por essa lei, Cardílio, um mundo vinha

Sobre a paisagem, frutos maturavam

Na lenta pulsação das velhas árvores,

Caíam se as mãos frias lhes tocavam.

 

Imóvel, regias campos e certezas.

Uma ordem ao mundo vinha, sôfrega,

Promessa de provir na água do tempo,

Uma canção no Estio silenciada.

 

Os carros foram, longe é a sua casa,

E ninguém quer as árvores plantadas

Nos teus jardins. Restou-te o parco nome,

 

Tesselas de mosaico, dizem, ânforas

Perdidas, vidros, mármores e um deus

Vivo na nitidez da branca estátua.


2007

domingo, 6 de agosto de 2023

Comentários (11)

Miguel Branco, Sem Título (Pequena figura sobre fundo verde), 1999 (aqui)

Como de súbito na vida tudo cansa!
e cansa-nos a vida e nos cansamos dela 
ou ela é quem se cansa de nós mesmos
Jorge de Sena

Quando dizemos vida nem damos conta de que uma palavra tão simples e de uso corrente tem tantas camadas de sentido que não é possível estarmos certos do que dizemos ao proferi-la. Recorremos a estratégias ingénuas para a circunscrever. Opomos vida e morte. Distinguimos vida verdadeira do simulacro onde se dá uma vida falsa. Contra a vida inautêntica, proclamamos a vida genuína. Porém, ela escapa-nos sempre. Associar à vida o cansaço, seja o nosso com aquilo que ela traz, seja com a própria vida, seja o dela connosco, não é mais do que confessar que ainda não sabemos o que ela é, e que nos tornámos incapazes de suportar as mil metamorfoses com que se manifesta em si, ou diante de nós ou em nós.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Ensaio sobre a luz (105)

Antonio Tápies, Dríadas, ninfas, arpías..., 1950

O que seria da imaginação sem a luz lunar? Talvez um alçapão por onde a vida caísse, talvez um abismo onde os sonhos se esconderiam, talvez uma buraco negro onde toda a matéria seria deglutida. Sem a luz da Luz a vida seria monstruosa e os monstros cresceriam em monstruosa malevolência.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O fim da astúcia da razão

A partir de certo momento do desenvolvimento da Modernidade – do Iluminismo, para ser mais preciso – foi-se solidificando uma crença que se tornou central na Europa e nos seus prolongamentos extra-europeus. Os indivíduos, ao perseguirem os seus interesses e paixões singulares, acabariam, por uma espécie de astúcia da razão, por realizar o bem comum. A virtude não estaria na contenção do egoísmo e das paixões que este arrasta, mas na sua realização. Um empresário, por exemplo, ao perseguir os seus interesses egoístas, o seu desejo de enriquecimento e ascensão social, criaria postos de trabalho e contribuiria para o desenvolvimento da sociedade em que está inserido. O bem comum seria assim o resultado de uma manobra astuciosa da razão que utilizaria as paixões do indivíduo para realizar algo que o ultrapassa.

A grande impugnação desta ideia veio, fundamentalmente, dos movimentos operários. Contestavam o tipo de relação que a propriedade privada dos meios de produção instaura entre os homens. Os trabalhadores seriam meros instrumentos para a realização dos interesses daqueles a quem prestam serviços. O lucro destes estaria fundado na exploração daqueles. Esta clivagem alimentou parte da história social e política dos séculos XIX e XX. Nos anos setenta do século passado, o filósofo norte-americano John Rawls tenta uma ambiciosa compatibilização entre as duas perspectivas. O perseguir dos interesses e paixões privados seria legítima desde que as diferenças sociais daí resultantes beneficiassem os mais desfavorecidos. O célebre princípio da diferença de Rawls ainda se inscreve, desse modo, no esquema liberal da astúcia da razão.

Ora, nesta equação falta um dado que se tem mostrado decisivo, a Terra como habitat do homem. Parece hoje claro que o planeta não suporta a intensidade das paixões e interesses egoístas. A Terra é limitada e vive num equilíbrio frágil, que a avidez humana está a destruir a grande velocidade. Aquilo que estamos a descobrir é que a astúcia da razão se tem mostrado não como uma estratégia para gerar o bem comum, mas um modo de ocultar a destruição sistemática da possibilidade de haver um futuro para a humanidade. Contrariamente ao que se pensa a partir do Iluminismo, a virtude não estará na prossecução dos interesses e paixões privados, mas na sua limitação drástica. A virtude não estará na riqueza, ainda que justamente distribuída, mas na vida frugal. A astúcia da razão, começa-se a perceber, não passa de um feitiço que se voltou contra o feiticeiro, e que este não sabe como evitar as consequências.