A partir de certo momento do desenvolvimento da Modernidade – do Iluminismo, para ser mais preciso – foi-se solidificando uma crença que se tornou central na Europa e nos seus prolongamentos extra-europeus. Os indivíduos, ao perseguirem os seus interesses e paixões singulares, acabariam, por uma espécie de astúcia da razão, por realizar o bem comum. A virtude não estaria na contenção do egoísmo e das paixões que este arrasta, mas na sua realização. Um empresário, por exemplo, ao perseguir os seus interesses egoístas, o seu desejo de enriquecimento e ascensão social, criaria postos de trabalho e contribuiria para o desenvolvimento da sociedade em que está inserido. O bem comum seria assim o resultado de uma manobra astuciosa da razão que utilizaria as paixões do indivíduo para realizar algo que o ultrapassa.
A grande impugnação desta ideia veio, fundamentalmente, dos movimentos operários. Contestavam o tipo de relação que a propriedade privada dos meios de produção instaura entre os homens. Os trabalhadores seriam meros instrumentos para a realização dos interesses daqueles a quem prestam serviços. O lucro destes estaria fundado na exploração daqueles. Esta clivagem alimentou parte da história social e política dos séculos XIX e XX. Nos anos setenta do século passado, o filósofo norte-americano John Rawls tenta uma ambiciosa compatibilização entre as duas perspectivas. O perseguir dos interesses e paixões privados seria legítima desde que as diferenças sociais daí resultantes beneficiassem os mais desfavorecidos. O célebre princípio da diferença de Rawls ainda se inscreve, desse modo, no esquema liberal da astúcia da razão.
Ora, nesta equação falta um dado que se tem mostrado decisivo, a Terra como habitat do homem. Parece hoje claro que o planeta não suporta a intensidade das paixões e interesses egoístas. A Terra é limitada e vive num equilíbrio frágil, que a avidez humana está a destruir a grande velocidade. Aquilo que estamos a descobrir é que a astúcia da razão se tem mostrado não como uma estratégia para gerar o bem comum, mas um modo de ocultar a destruição sistemática da possibilidade de haver um futuro para a humanidade. Contrariamente ao que se pensa a partir do Iluminismo, a virtude não estará na prossecução dos interesses e paixões privados, mas na sua limitação drástica. A virtude não estará na riqueza, ainda que justamente distribuída, mas na vida frugal. A astúcia da razão, começa-se a perceber, não passa de um feitiço que se voltou contra o feiticeiro, e que este não sabe como evitar as consequências.
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