Não estou certo de que as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), realizadas em Portugal, tenham sido uma afirmação da Igreja portuguesa. Estou convicto, porém, de que foram um poderoso revelador da existência, no país, de uma corrente radical jacobina fortemente aguerrida, apesar de claramente minoritária. Manifestou-se em coisas estapafúrdias, como a decapitação da estátua de Santo António em Torres Novas, ou nos desabafos anticlericais e anticatólicos nas redes sociais, numa espécie de revivescência dos tempos intolerantes da primeira República. Exprimiu-se, em nome da laicidade do Estado, em coisas mais sérias como a contestação da Concordata entre Portugal e o Vaticano e a crítica ao apoio público às JMJ. Vale a pena tentar perceber se esta contestação faz sentido.
Para pensar o problema é necessário compreender que o Estado português actual nasce de duas tradições histórico-políticas. Em primeiro lugar, a tradição nacional, o facto de Portugal ter sido, na prática, uma criação da Igreja Católica. Não apenas no reconhecimento da monarquia portuguesa, mas também na ajuda fundamental dada pela Igreja no processo de reconquista cristã e mesmo de ocupação territorial. Em segundo lugar, uma tradição nascida na Europa pós-guerras religiosas, nomeadamente, nos textos do filósofo britânico John Locke (1632-1704), defende a separação entre o poder político e as instituições religiosas. Os contestatários da Concordata e do apoio à Igreja Católica defendem que as duas tradições são incompatíveis e que deve ser privilegiada a completa independência do Estado em relação à Igreja romana.
O curioso é que
na Constituição da República Portuguesa, de 1976, reconhecendo-se a liberdade
religiosa, não se afirma, ao contrário do que se passa na Constituição
francesa, em lado nenhum que o Estado português é laico. Esta estratégia
constitucional não foi uma mera manobra retórica, mas uma forma de
compatibilizar as duas tradições, aquela que vem do início da nacionalidade e a
que nasce na Europa ilustrada. Esta compatibilização assegurou, ao contrário do
tempo da primeira República, a não existência em Portugal de um problema
religioso, de um conflito entre a Igreja e as novas instituições. A democracia
portuguesa inscreve-se e desenvolve-se num equilíbrio criativo entre o reconhecimento
da importância nacional da Igreja Católica e o reconhecimento das liberdades
religiosas e de um Estado não confessional. Tanto a Concordata como, agora, o
apoio público às JMJ fazem parte desse equilíbrio criativo que está na origem
da democracia portuguesa e assegura a paz pública. Mexer nesse equilíbrio seria
abrir a caixa de Pandora.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.