quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Meditações melancólicas (92) Nadar com costa à vista

Carlo Carra, Nuotatori, 1929

Há, ao nível nacional, um jogo completamente ocioso. Oiça-se o discurso da oposição – nomeadamente, a de direita – e parece que vivemos no pior dos mundos possíveis, com tudo o que há de mau na índole nacional concentrado naquela gente incapaz que nos governa. Repare-se no discurso do governo e não há nada na oposição que não seja o reflexo do que há de mau nessa mesma índole nacional, o que, se ela chegasse ao governo, haveria de nos pôr pelas ruas da amargura. Deixemos governo e oposição de lado, oiçamos os portugueses. O que dizem dos outros, mas nunca de si mesmos, é que eles, esses terríveis outros, representam o que há de mau na tal índole nacional. A índole nacional, com os seus trejeitos existenciais, as suas manobras espúrias, o seu fazer manhoso pela vida, é uma coisa extraordinária, pois só existe nos outros, que são os culpados pelo nunca suficientemente sublinhado atraso nacional. O mais extraordinário é que existimos há 900 anos, com alguns percalços, mas sabendo fazer pela vida. Se ao nascer, pelas condições geopolíticas, Portugal tinha escassas possibilidades de persistir na existência, com uma índole nacional tal como a descrevemos, já há muito deveria ter desaparecido do mapa das nações independentes. Cá continuamos. Talvez os nossos insuperáveis defeitos, onde se inclui a contínua inveja do outro e o desprezo pelos melhores, sejam as nossas virtudes, são eles que nos têm permitido sobreviver e atravessar os oceanos tempestuosas do mundo da política internacional. Somos irreformáveis, mas talvez isso seja a forma de podermos continuar a nadar com costa à vista. Existir há 900 anos deverá querer dizer alguma coisa.
 

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