sábado, 5 de abril de 2014

Um facto decisivo

Alfredo Cunha - Salgueiro Maia no 25 de Abril de 1974

Um estudo do Instituto de Ciências Sociais, segundo o Expresso, revela que, passados 40 anos, existe uma unânime rejeição do Estado Novo. Uma maioria de Portugueses (59%) considera mesmo o 25 de Abril de 1974 como o dia mais importante da nossa história. O 25 de Abril fazia parte de um painel de datas históricas que incluíam a Batalha de Aljubarrota, a chegada de Vasco da Gama à Índia, a Restauração de 1640, a adesão de Portugal à CEE e a implantação da República. Talvez faltem, no elenco, duas datas determinantes. A data do Tratado de Zamora (5 de Outubro de 1143) onde se reconhece a passagem do Condado Portucalense a Reino e Afonso Henriques como Rei. A outra seria a do Terramoto de 1755. É difícil determinar, numa história com quase 900 anos, qual o dia mais importante. Todos os indicados são fundamentais. O problema que quero colocar é outro e está ligado à desvalorização histórica da data por alguns sectores (que parecem ser, agora, bastante diminutos). Por que razão foi o 25 de Abril de 1974 uma importante data da história de Portugal e, também, da história universal? 

Há três grandes motivos para sublinhar a importância histórica da data para a comunidade nacional. Em primeiro lugar, ela representa o fim de um processo iniciado na segunda dinastia, talvez com Afonso V. Esse processo tem no seu cerne uma orientação extra-europeia de Portugal. Em primeiro lugar, com a expansão no norte de África e depois com os denominados Descobrimentos. A partir dessa altura, o ultramar, no sentido etimológico da palavra, passa a ter um papel central no desenho da política nacional. Esse processo, que durou cinco séculos, terminou em consequência do 25 de Abril, que pôs fim à guerra colonial, abriu o processo de independência das colónias portuguesas e provocou o retorno de centenas de milhares de portugueses à metrópole, como se dizia na época. 

Em segundo lugar, a data é fundamental para os portugueses porque, pela primeira vez, Portugal é dotado de um regime plenamente constitucional e democrático. É verdade que, na sequência da Revolução Francesa e das invasões napoleónicas, Portugal vai reorientar, não sem uma grande instabilidade e uma guerra civil, o regime monárquico da variante absolutista para a constitucional. A própria dinâmica constitucional é alvo de várias peripécias - tentando acordar a perspectiva liberal e a absolutista - e a democracia que daí resultou esteve longe de ser uma democracia tal como a reconhecemos hoje em dia. Mesmo a mudança de Regime, em 1910, não nos trouxe uma democracia no pleno sentido que ela tem hoje. A Revolução do 28 de Maio e o Estado Novo aboliram, por completo, a frágil democracia e as liberdade que existiram na Monarquia constitucional e na República. Só com o 25 de Abril de 1974 é que se reconhece a todos os cidadãos o seu estatuto de maioridade cívica e política. Esta transição de um povo da menoridade para a maioridade política e cívica é um acontecimento decisivo na história de qualquer nação.

Em terceiro lugar, foi o 25 de Abril de 1974, com o fim da guerra e a democratização, que permitiu - e, de certa forma, obrigou - a um terceiro acontecimento fundamental na nossa história, a adesão à CEE. A importância desse passo não está apenas em Portugal ter entrado num comunidade económica, num grande mercado. As consequências políticas são fundamentais e afectam - como estamos a descobrir hoje em dia - a soberania da própria nação. Com os sucessivos tratados, Portugal partilhou - em muitos casos abdicou - de parte substancial da sua soberania. É verdade que, do ponto de vista lógico, não há uma relação necessária entre o 25 de Abril e a adesão à CEE. No entanto, o fim da política ultramarina, a situação geográfica do país e a necessidade de pertencer a um espaço político amplo, numa fase já avançada da globalização mundial, não deixavam outra alternativa ao regime saído do 25 de Abril.

Do ponto de vista internacional, o 25 de Abril tem um duplo impacto. Com a abertura do processo de descolonização, o 25 de Abril de 1974 deu lugar a novos palcos de confronto entre as super-potências da época. URSS e EUA (com a China em atenta expectativa) sustentaram prolongados conflitos internos em Angola e Moçambique. As guerras civis que grassaram nesses dois novos países são uma consequência do fim da guerra colonial e das independências das novas nações, isto é, do 25 de Abril de 1974, bem como da intromissão dos grandes interesses políticos e económicos internacionais. Hoje isto parece irreconhecível devido à implosão da URSS e aos realinhamentos dos poderes instalados em Angola e Moçambique, mas durante muitos anos o confronto entre as super-potências teve, nesses países, um importante palco.

Por fim, o 25 de Abril de 1974, com a transição à democracia, abre a denominada terceira vaga de democratizações, como lhe chamou o cientista político conservador Samuel Huttington. No processo de democratização global, a primeira vaga de democracias inicia-se no século XIX, a segunda com a vitória dos aliados em 1945. A terceira vaga, talvez a que tenha tido maior impacto espacial, começa com a revolução portuguesa, que abre caminho à democratização em Espanha, na Grécia, na América Latina, nos países da Ásia-Pacífico e, após o colapso da URSS, aos países do leste da Europa. A revolução do 25 de Abril de 1974 é, desse modo, a fonte de um processo de democratização que ultrapassa em muito as limitadas fronteiras europeias, tornando-se, também por isso, num acontecimento decisivo da história mundial.

Independentemente da consideração positiva ou negativa destes factos, a verdade é que o 25 de Abril de 1974 é uma data central na nossa história, um daqueles pontos incontornáveis em que o fluir da vida de uma comunidade  muda de rumo e obriga as pessoas a mudar de vida. Se me pedissem para designar as quatro datas decisivas da nossa história, o 25 de Abril de 1974 estaria entre elas, ao lado das datas do Tratado de Zamora, da Batalha de Aljubarrota e do 1.º de Dezembro de 1640. Em todas elas se jogou alguma coisa de absolutamente decisivo para a nossa comunidade

12 comentários:

  1. Excelente texto, com o qual concordo inteiramente, faltando a meu ver apenas realçar o utópico, mítico já, que o 25 de Abril representa também: o de «Esta é a madrugada que eu esperava
    O dia inicial inteiro e limpo
    Onde emergimos da noite e do silêncio
    E livres habitamos a substância do tempo», de Sophia...para grande parte dos portugueses, teve também a força de um sonho maravilhoso em que se acreditou que a partir desse dia «inicial» acabaria para sempre a «exploração do homem pelo homem». Andava eu no liceu e, nesse dia, retive para sempre esta frase, anunciada por um dos colegas mais velhos, numa das famosas RGAs...e esse fulgor ainda persiste.

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    1. Tentei reduzir ao máximo a intervenção das minhas apreciações e daquilo que poderia ter constituído um sonho, um desejo, o traçar de uma utopia (aliás, eu não tenho uma consideração simpática para com a utopia na esfera política, pois, invariavelmente, dá lugar ao pior. Esse dia limpo acabou, como sabemos, por se tornar, mais uma vez coisa pouca asseada. O dia foi limpo, mas depois de 40 anos, olhamos e poucas coisas asseadas e decentes ficaram de pé. Sobre isso falarei numa outra altura.

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  2. Um texto notável. Limpo, leal e objectivo. Intelectualmente honesto. Uma página que é, em síntese, a página da História.
    Fez-me recordar, ainda que de maneira diferente, mais serena, a clara madrugada em que senti escorrerem-me lágrimas felizes pela face...
    Obrigado
    Um abraço

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  3. Aguardamos então que escreva sobre esse Isso.

    O «dia inicial inteiro e limpo» foi apolítico, daí a sua grandiosidade tão bem expressa por Sophia. Habita « a substância do tempo», está em nós, no mais fundo de nós e não há mácula que o deteriore. Transpô-lo para o plano humano é que é obra, será obra, um dia. Obrigada por tão excelente texto..

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    1. Eu nunca seria capaz de dizer que esse dia foi apolítico. Foi o dia em que a Pólis se reconheceu como tal. Depois, vieram todos os outros dias, os dias do poder, os dias em que o poder se sobrepôs à Pólis. Mas quanto a isso, não há nada a fazer. Será sempre assim. Ter vivido um dia desses, um dia que só acontece de séculos em séculos, é um privilégio concedido pelos deuses. Fiquemos gratos.

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  4. O problema foi a Pólis e a sua organização maléfica em partidos que se apoderaram do poder e dos direitos de todos....o que pretendi dizer com «apolítico» foi isto: « apoliticismo seria considerar que os direitos políticos são humanos e naturais, individuais, pessoais e por conseguinte teoricamente intransferíveis a terceiros ( sejam estes individuos, grupos ou entidades.

    • El apoliticismo admite implícitamente que toda forma política sistémica tiene consecuencias sociales, (de otro modo no cabria racionalmente una actitud declarativa disidente) pero en una sociedad basada en la política clásica (por transferencia o cesión de usos de la soberanía personal) los derechos políticos personales no se ejercen de forma autónoma e intransferible o se recuperan a voluntad, estos se transfieren, delegan, diluyen, quedan diferidos o en casos extremos (dictaduras extremas) simplemente no se ejercen.
    La actitud apolítica se opone por concepto a la política tradicional de transferencia total o parcial de derechos y poderes políticos no a la política per se pues en el pensamiento apolítico generalmente se admite que, de uno u otro modo, todos «somos homo-politicus» (Aristóteles decía animales políticos).»
    in Wikipédia...mas há muito mais escrito sobre o tema...

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    1. Continuo com dificuldades relativamente ao apoliticismo. Uma curiosidade. Ao mesmo tempo, e no mesmo texto (Política), que defendia que o homem é um animal político, Aristóteles defendia a escravatura. A minha dificuldade, porém, está em considerar os direitos políticos como direitos naturais, ao lado de outros direitos naturais como a vida, a liberdade, a integridade e a propriedade. Mesmo estes direitos podem ser questionados, isto é, a própria noção de direitos naturais é questionável. O problema é complexo, nomeadamente o casamento entre direito e natureza. Os sofistas, por exemplo, opunham o direito convencional e a natureza (os direitos naturais eram para eles os da força). Seja como for, percebo que as teorias contratualistas - fundadas na transferência de direitos - são questionáveis, embora não me pareça que a perspectiva apolítica (a da naturalização dos direitos políticos) seja a melhor resposta. Sem ter meditado o suficiente sobre o assunto, manteria o carácter convencional de todos os direitos e a sua natureza histórica, a sua emergência num dado momento.

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  5. Sim, é um problema complexo e terei de reler e ler com atenção Proudhon e Kroptokin, que considero actualmente mais urgentes do que nunca. Não é por acaso que textos e citações destes autores germinam cada vez mais pela internet fora e não só, mais livros, mais análises, mais artigos sobre os temas que trataram e que tinham sido quase ofuscados do saber, do conhecimento, nas últimas e largas dezenas de anos, pois não convinham ao capitalismo dominante nem aos senhores «eleitos» por nós que dominam o mundo. Dizer porém que os direitos políticos dificilmente se considerão direitos naturais é uma contradição. Se vivemos, temos naturalmente o direito de intervir na sociedade em que vivemos. O que as nossas democracias têm feito é adaptar esse direito natural ás conveniências de grupos restrictos, poderosos. Claro que tem razão quando diz «Ter vivido um dia desses, um dia que só acontece de séculos em séculos, é um privilégio concedido pelos deuses. Fiquemos gratos.» mas não nos podemos ficar pela gratidão apenas, há que manter viva a chama e o que o Jorge Carreira maia fez neste seu texto foi isso precisamente. Ateou a chama, mantendo-a viva. Voltando ao dia «inteiro e limpo», também não foi por acaso que a canção mais emblemática desse dia continua ainda hoje a ser cantada em toda a parte, até em Espanha, em França, na Alemanha, a Grândola Vila Morena. Porque, em simples versos, José Afonso consegue trazer-nos à alma o que pode ser uma sociedade perfeita. «Terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena» Os poetas têm este condão...Aristóteles sabia-o, a curiosidade de defender a escravatura numa época em que as mulheres também estavam em segundo plano faz parte da temporalidade histórica em que viveu.

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    1. Não há ligação lógica entre viver e ter direito de intervir politicamente na sociedade. A história da humanidade é um exemplo fastidioso de se estar vivo e não ter direitos. O direito não decorre da nossa natureza, mas da convenção histórico-social (resultante da cooperação e dos conflitos sociais) que determina certas bens como direitos e outros não. Quanto ao resto, eu não tenho qualquer simpatia pela utopia política, por sociedades perfeitas e outras coisas do género. O resultado desse entusiasmo é sempre uma tirania. Só mais uma pequena provocação. O retorno dos anarquistas está intimamente ligado ao desenvolvimento da actual fase do capitalismo. A ausência de Estado preconizada pelos anarquistas é gémea da ausência de regulação dos defensores do capitalismo. Ambos odeiam o Estado e há, na realidade, muitos defensores do anarco-liberalismo. Aliás são duas teorias irmãs. Por outro lado, o liberalismo tem uma nuance que a esquerda nunca refere. Ninguém é obrigado a deixar-se explorar. Pode fundar uma empresa e passa a explorador ou pode fundar uma cooperativa e coopera com outros para competir no mercado. As sociedades liberais não impedem a cooperação. O que as distingue, porém, é que não admitem uma economia planificada (parece que tiveram razão nesse caso). A natureza utópica - logo, distópica - do liberalismo está na sua versão radical: a sociedade de mercado. Como se todos os bens sociais pudessem ser comprados e vendidos. Há coisas que podem e outras que não.

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  6. Creio que o liberalismo e o anarquismo só são teorias irmãs aparentemente.É um erro comum, a meu ver, confundi-las. Radicam em pressupostos completamente diferentes, a primeira aceita a dominação do homem pelo homem, exalta o culto do poder do mais forte, a segunda afirma que o homem poderá ser «a prince among princes», preconiza a igualdade, a fraternidade e a liberdade. Isto, em termos muito simples. Claro que convém à corrente de poder dominante confundi-las, para que não haja divergentes a ousar a diferença de possibilidades de vida. Bem sei que o Jorge Carreira Maia se protege perante as utopias, com razão muitas vezes. Contudo, são elas que fazem mover o mundo, infelizmente a maior parte das vezes para mal ou pior. O anarquismo tem ressurgido em força-é ensinado e debatido em várias universidades inglesas e norte-americanas, por exemplo- precisamente como oponente de contra-peso, e bem pesado; face ao descalabro a que nos levaram as teorias liberalistas no seu pior, tendo nós atingido actualmente um pico em que não são mais as pessoas que importam mas sim os «mercados», a ditadura financeira, muito pior por mais obscura nos seus intentos e poderes do que as anteriores que ao menos tinham rosto. A utopia é o sonho «que comanda a vida»-mais uma vez recorro aos poetas-a força motriz que nos faz acreditar e lutar por uma sociedade mais justa. Perfeita? Sim, uma sociedade perfeita. Um círculo é perfeito e no entanto pode ser constituído por mil e um pontos, linhas ou traços imperfeitos. A perfeição é um alvo, algo que se procura numa contínua busca. Se pensarmos nas palavras de Cristo «O meu Reino não é deste mundo» compreenderemos melhor o que tento dizer com perfeição terrena. Foi também Ele que nos disse: «Amai-vos uns aos outros». Nunca estivemos tão longe civilizacionalmente de atingirmos esse nível...Bem, não o quero cansar mais. Se alguma coisa sou sou anarquista, que hei-de fazer? Um abraço.

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    1. Há um preconceito, entre os adversários do liberalismo, relativamente aos seus valores morais. Se lermos os autores liberais, não é a ideia de dominação e de exploração que os move. É a ideia de liberdade, de iniciativa, de ser dono do seu destino, de não depender de poderes paternais, como o Estado, etc. No fundo, eles são herdeiros de Kant e do Iluminismo. O elemento central é o contrato, o contrato livre entre pessoas livres. Se nós queremos pensar os limites do liberalismo, então temos de tentar compreender as suas premissas. Coisa que raramente ou nunca é feita pelos seus adversários. As premissas liberais aproximam-se das do anarquismo. É por isso que o anarquismo voltou a ser importante. Não como projecto político, mas como tentativa de encontrar indicações emancipatórias num período em que o socialismo declina e o liberalismo se tornou o pensamento dominante. Há dois conceitos centrais que precisam de ser repensados. O de autonomia e o de contrato. O conceito de autonomia é central no liberalismo e no anarquismo. O de contrato parece ser mais pregnante no liberalismo do que no anarquismo, mas talvez não seja. São assuntos, todavia, que exigem meditação e estudo, e estão fora do âmbito de um blogue. Quanto à utopia e à sociedade perfeita, a minha oposição é radical. No outro mundo, talvez existam sociedades perfeitas. Neste, não é possível. Há sociedades mais decentes e asseadas do que outras. Há sociedades em que os cidadãos são mais exigentes do que noutras. Mas a dimensão será sempre a da imperfeição. Sou reformista. Vamos tentar fazer melhor, vamos tentar tornar as coisas mais decentes, mas sabendo claramente os limites que o egoísmo humano impõe. Quanto à utopia, nada tenho contra, desde que seja pessoal e privada. Pela própria natureza do pensamento utópica, se a aplicarmos à política, haverá todas as condições para grandes desgraças. Como vê, não sou anarquista nem utópico. Tenho uma visão antropológica pessimista, embora creia que todos se devem bater pelo melhor. Abraço.

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