sexta-feira, 4 de abril de 2014

Novos tempos


Os resultados das eleições em França vieram mostrar que se está a desenhar na Europa um novo eixo do fenómeno político. Durante muito tempo, os pólos estruturantes da política foram a esquerda e a direita. Estas duas visões da realidade social criavam o cenário onde as classes sociais geriam conflitos e negociavam consensos. Estes pólos não deixaram de existir. Continua a haver conflitos de classe e posições políticas de esquerda e de direita.

O pano de fundo, porém, passou, segundo alguns autores, a ser outro. O conflito central, já reconhecido há muito nos EUA, será agora entre liberais e comunitaristas, havendo liberais de direita e de esquerda, assim como comunitaristas. O que distingue os campos? Os liberais centram a actividade política nos interesses do indivíduo e, nos casos mais radicais, como era o da senhora Thatcher, negam a existência da sociedade. Os comunitaristas, pelo contrário, sublinham importância das comunidades, do bem-comum e do peso que estes devem ter na decisão política.

O crescimento eleitoral da extrema-direita em França só é compreensível neste novo quadro. Sublinhe-se, em primeiro lugar, a conversão da antiga direita, conservadora ou democrata-cristã, e da esquerda socialista ao liberalismo e o abandono que ambas fizeram da ideia de comunidade. O que move hoje as políticas governamentais é o lucro privado. O bem-comum, o patriotismo e a solidariedade comunitária – que eram advogados, embora de forma diferente, tanto à esquerda como à direita – foram pura e simplesmente abandonados. Em segundo lugar, a esquerda marxista parece ter perdido qualquer capacidade de atracção. Serão legião os antigos eleitores operários do PCF que agora suportam a Frente Nacional. Sem se perceber isto, não compreenderemos que a senhora Le Pen está apenas a aproveitar um espaço político ao abandono.

A experiência do passado mostrou uma coisa curiosa. Capitalismo e socialismo puderam conviver nas mesmas comunidades, conflituaram e negociaram, fizeram casamentos de conveniência. Hoje em dia, o crescimento das desigualdades levará a uma mais acentuada polarização entre aqueles que triunfam na sociedade de mercado, e afirmam posições ostensivamente liberais, e o exército dos derrotados da vida, cuja esperança final acaba por estar na ideia de uma pátria mítica, onde a velha ordem comunitária seja restaurada. Resta-nos saber se a convivência entre o neoliberalismo e as forças emergentes do comunitarismo encontrará, na radicalidade que se desenha, espaço para negociar e ceder.

6 comentários:

  1. Acredito que este crescimento da extrema-direita não será mais do que um epifenómeno, se bem que cautela e caldos de galinha se recomendam...
    As alianças tácitas e espúrias entre o capitalismo que defendia a exploração do homem pelo homem e um certo "socialismo" que defendia o contrário conduziram a este estádio.
    Esperemos que o que chama de comunitarismo seja a solução imediata.

    Um abraço

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    1. O comunitarismo tem um amplo campo. De certa forma, a Frente Nacional é comunitarista. O Salazarismo era, claramente, comunitarista. Socialismo, social-democracia e comunismo são também comunitaristas. Em França, por exemplo, as revoltas na Bretanha são claramente revoltas comunitaristas, e têm apoio tanto na extrema-direita, como na esquerda e na extrema-esquerda. O comunitarismo de direita é, tendencialmente, marcado por uma certa xenofobia e ideia de exclusão do estrangeiro, mas não sempre. O de esquerda releva mais da negociação republicana entre culturas diferentes presentes no mesmo território. Isto é um debate americano que está a chegar à Europa. Veremos como a Europa vai votar em Maio.

      Abraço

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  2. Gosto do texto e das ideias que o mesmo coloca sob a lupa.
    Para além de um problema de vias, e de opções entre individualismos e comunitarismos, existe o problema de uma implosão da confiança nos sistemas de organização social assentes na política, a possibilidade de conflitos sociais traz consigo, quanto a mim, a possibilidade de uma repressão da expressão do desagrado, uma imposição de ordem consentida e até exigida por povos assustados e incapazes de lidarem com o caos que o desmoronar de um tempo arrasta. A radicalidade conduz a lugares de angústia e a angústia alimenta o desejo de protecções, por mais vazias que estas sejam, santinhos de papel, fazedores de justiça popular, milícias, um recuar na organização social que se protegeu da reacção directa ao ataque através das leis e da sua aplicação, Estes fantasmas, presentes em qualquer narrativa de ficção científica produzida no séc. XX, acicatam o pânico de uma existência dominada pelos conflitos entre indivíduos ou grupos de indivíduos, impotentes perante o poder despótico de corporações que se sobrepuseram à ideia de estado. É isto que verdadeiramente se joga, e não é só na Europa.

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    1. De certa forma, o comunitarismo é já uma resposta/reacção a essa implosão da confiança, de que fala. Fundamentalmente, os comunitarismos marcados pelo racismo e a xenofobia. Aliás, os comunitarismos têm um importante peso em sociedades não ocidentais. E podem reemergir como esses fantasmas de que fala. E esses fantasmas não apenas dos romances distópicos do século XX. São o dos campos de concentração nazis e soviéticos. Esses espectros animaram a crise da Ucrânia, crescem em França e na Hungria, para não falar na Holanda, Áustria e sabe Deus por onde mais. O que acho extraordinário é que a classe política Europeia tenha esquecido tão rapidamente que a Europa pode desenvolver-se sem que os extremos políticos tivessem papel político porque tinha criado uma sociedade de perpétua negociação entre o liberalismo e o socialismo, cujo pano de fundo era o Estado-Nação, essa comunidade central para qualquer Europeu. Isto não augura nada de bom.

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    2. Absolutamente de acordo. Essa estranha amnésia de governantes e decisores europeus levanta estranhas suspeitas acerca da herarquia dos poderes políticos face aos interesses económicos.

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    3. Não há qualquer suspeita. O projecto liberal, desde o seu início em Inglaterra, é marcado por uma orientação para uma governação cujo fim seja o lucro privado. Essa idiossincrasia anglo-saxónica conquistou a Europa.

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