A pergunta sobre a identidade de si mesmo é um topos recorrente da literatura ocidental. Um romance é o
dispositivo tecnológico que se inventou para se observar o homem em busca daquilo
que é, em busca da sua identidade. Não se trata, claro, de especular sobre o self, mas de o ver em acção, de observar
a gesta que conduz ao reconhecimento. Raramente, porém, reconhecimento e
reconciliação vão a par. É o que se passa também em A Ilha, um romance do escritor húngaro Sándor Márai publicado em 1934 e traduzido em 2012 para português.
Viktor Henrik Askenasi é um professor do Instituto de Estudos
Orientais de Paris que levava uma existência burguesa com um casamento
convencional. Esta vida pautada pelo reconhecimento dos pares, no entanto, não
era suficiente para o apaziguar. Desde sempre que uma dissonância existencial
lhe corroía a alma e semeava uma certa intranquilidade espiritual. Procurava
qualquer coisa que o casamento não lhe dava. Para escândalo da boa sociedade a
que pertencia, trocou a mulher por uma bailarina russa. Uma mudança radical. Askenasi, porém, rapidamente percebeu que não alterava em nada a sua situação interior.
A dissonância não desaparecia na vida pouco convencional que agora levava.
É este o ponto de partida da narrativa. Nem a mulher nem a bailarina
eram a solução para o problema que o atormentava. Aconselhado pelos amigos,
que o criticavam e, ao mesmo tempo, o invejavam pela despudorada aventura com a
bailarina russa, Askenasi empreende uma viagem pelo Mediterrâneo. Pára em
Ragusa (actual Dubrovnik) e instala-se no equívoco hotel Argentina. Uma onda de
calor transtornava os hóspedes e propiciava “uma atmosfera de sensualidade
quase palpável e impúdica”. É neste ambiente que uma hóspede diz a palavra
chave que desencadeia os acontecimentos, que levarão à revelação que Askenasi
procurara toda a vida. Zwoundvierzig
(quarenta e dois) na pronúncia berlinense (e não zweiundvierzig). Ela pede, desse modo, a chave do seu quarto, mas é
também um convite que, tomado por uma certa vertigem, o professor Askenasi
decide aceitar.
Que o resultado da sua autodescoberta gere a revolta contra Deus
percebe-se, pois aquilo que ele descobre de si está longe de ser interessante e
de corresponder aos anseios que o levavam à sua busca. Se a bailarina russa lhe
indicou um caminho, se lhe permitiu a ruptura com a convenção e o mundo burguês
das aparências, a hóspede do quarto quarenta e dois foi a alavanca que possibilitou
erguer o véu e descobrir a verdade tenebrosa que residia em si. No fim do livro, tomado pelo
desvario, Askenasi pergunta-se “o que é o erotismo?” E responde: “Poucas
vezes o encontrei… Uma vez estava sentado no hall de um hotel, depois do
almoço. Uma mulher jovem levantou-se da
cadeira ao lado e dirigiu-se ao elevador, fazendo sinal ao marido para que a
seguisse. Entraram juntos no elevador, e eu só vi uma mão e o braço dela ao
fechar-se a porta devagar antes de começarem a subir. Acho que é o único gesto
erótico que recordo.” Depois, acrescenta: “Nem mais tarde, nada do que
experimentei na cama. Excepto hoje à tarde, talvez, quando a agarrei pelo
pescoço… Sabes, ela não entendia o que eu queria.”
No lugar de um reconhecimento reconciliador, Askenasi descobre-se na
obscuridade que o habita, descobre-se num eros
que o conduzirá à perdição. O que cabe interrogar, com a leitura de A Ilha, é a relação entre eros e o espírito. Como poderá a
experiência erótica ser integrada na descoberta espiritual do homem? Como
poderá este evitar que o erotismo o conduza à degradação e seja motivo de
corrupção de si mesmo? Contrariamente ao que, hoje em dia, se tornou opinião
corrente, a sexualidade está longe, talvez muito longe, de ser um lugar de
comunhão entre dois seres humanos. Talvez em casos excepcionais isso possa
acontecer. Na generalidade, não passará de um lugar de prazer, se o houver, em
que dois se acompanham, se vigiam e saciam as exigências que o corpo lhes impõe.
Noutros casos, porém, como o de Viktor Henrik Askenasi ela é o sintoma do seu
isolamento, a prova de que ele é uma ilha ou, para utilizar o velho conceito de
Leibniz, uma mónada incomunicável, encerrada na escuridão de uma moradia onde
não há janelas.
Sándor Márai (2012). A Ilha.
Alfragide: D. Quixote. Tradução de Piroska Felkai.
Posso estar enganada, mas por mais que eu seja fan da psicanalise (em termos teoréticos) e do sexo (em tremos pragmáticos) penso que nucna pensei em procurar no eros essa saída pro reconhecimento de si. Acho que ele tem um papel, claro, mas é só o de fazer até alargar o buraco, a la Lacan. A identidade, naquilo que pode ser equacionada em vida (ou seja, naquilo que podemos "tapar" mal e porcamente nossos buracos) é muito mais uma questao do social do que do erótico. Lembro agora , por ex, da Ana Karenina!!!
ResponderEliminarQuando conseguimos descobrir o sublime no "antes" e no "depois", é porque conseguimos viver o erotismo.
ResponderEliminarAbraço
Coisa que o pobre do Askenasi só por instantes descortinou. É um belíssimo texto. Estou a tornar-me leitor assíduo do Sándor Márai.
EliminarAbraço