quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Das grandes narrativas

Hans Sebald Beham - The Anointing of David by Samuel (1533)

As grandes narrativas que até hoje conhecemos - a cristã, a liberal-progressiva, a hegeliana, a marxista, a fascista - podem muito bem revelar-se como tentativas inadequadas para nos apropriarmos da complexidade do mundo, mas tal conhecimento crítico não deslegitima nem a narração das coisas que se passaram nem dispensa o pensamento de buscar uma perspectiva luminosa para esclarecer as singularidades apreensíveis de um todo fugidio.  (Peter Sloterdijk (2008). Palácio de Cristal. Lisboa: Relógio d'Água, p. 14)

Na sequência da publicação, em 1979, de La Condition Postmoderne, de Jean-François Lyotard, tornou-se moda, nos meios intelectuais do Ocidente, falar na crise das grandes narrativas, no fim da pregnância destas narrativas para configurar um sentido para a vida dos homens. A resposta de Sloterdijk, porém faz todo o sentido. O facto de as grandes narrativas se terem mostrado, de uma forma ou de outra, inadequadas não significa que não se deva continuar a construir narrativas, as quais deverão permitir conferir um sentido às singularidades que compõem a vida.

Podemos encontrar, nas grandes narrativas, diversos elementos estruturais. Mas há um elemento que, podendo não estar presente em todas as grandes narrativas referidas, é aquele que, nos dias de hoje, reclama uma nova grande narrativa. Esse elemento é o sofrimento humano, o escândalo da dor, e antes do mais a injúria à consciência moral da dor inflingida pelo homem ao homem. O sofrimento apela à grande narrativa não apenas para ser contado, não apenas para ficar registado na gesta humana a dor que os homens infligem uns aos outros, não apenas para que essa dor adquira um sentido. O sofrimento apela à grande narrativa ainda para exprimir a esperança do fim desse sofrimento. 

Se se observar a grande narrativa cristã, ou a marxista, descobre-se de imediato o papel que o sofrimento imposto aos homens por outros homens tem nessa narrativa, e como nela se configura um princípio de esperança, se tece um véu de ilusão que torna a vida aceitável. O grande drama de hoje está em que a morte das grandes narrativas tradicionais não foi seguido pelo nascimento de uma nova narrativa. A consequência é terrível, pois se o sofrimento dos homens não diminuiu, a ausência de uma grande narrativa pregnante, ao roubar-lhes um princípio de esperança, intensifica o próprio sofrimento e acrescenta dor à dor que o homem sofre. Com a narrativa cristã, o homem sofria mas tinha a esperança na salvação. Com a marxista, o homem sofria mas tinha a expectativa de um mundo sem opressão. Nos dias de hoje, o homem sofre e a única expectativa é a continuação do sofrimento. As nossas sociedades não são apenas injustas. Ao desconstruirem as grandes narrativas, ao denunciá-las, juntaram à injustiça o sadismo.

4 comentários:

  1. Creio que essa nova grande narrativa já está em embrião, gerada no seio desse «Inverno do nosso descontentamento» e activada nas grandes manifestações sociais em todo o mundo, nas grandes Praças Tahrir de todas as cidades, por todos os movimentos de Indignados. Muito bom e levarei...

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    1. Tem uma esperança que já não consigo ter. E as praças Tahrir, por norma, têm dado governações fundamentalistas. De certa forma, o fundamentalismo islâmico é uma grande narrativa operante e funda-se, também ela no sofrimento, mas é uma narrativa que dispenso, como a Maria também dispensará.

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  2. Mas existem muitos muçulmanos que rejeitam esse fundamentalismo, e, claro, trata-se de uma narrativa que dispenso... o problema é a esperança. Tenho-a sim.

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  3. Creio que a última grande narrativa foi uma tal "Terceira via" que, perdoe-se o lugar comum, "nem foi lá nem fez nada"...

    Abraço

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