Jean François Millet - Pastora con su Rebaño (1864)
"Lamento profundamente" - afirmava um comissário de cercamento - "o mal
que ajudei a fazer a dois mil pobres, à razão de 20 famílias por aldeia.
Muitos deles, aos quais o costume permitia levar rebanhos ao pasto
comum, não podem defender os seus direitos, e muitos deles, pode-se dizer
quase todos os que têm um pouco de terra, não têm mais de um acre; como
não é o bastante para alimentar uma vaca, tanto a vaca como a terra
são, em geral, vendidos aos ricos proprietários. (Annals of Agriculture,
citado por Paul Mantoux, A Revolução Industrial no século XVIII, p. 169.)
Nunca me deixa de espantar o embasbacamento perante a Inglaterra, apresentada como pátria da civilidade e da democracia. Não é que outras potências não sejam igualmente desprezíveis, mas a virtude da era vitoriana, por exemplo, está construída sobre (sublinho sobre pois o cercamento e apropriação de terras comuns começou muito antes) a tenebrosa Lei dos Cercados que permitiu desapossar um número incalculável de camponeses das terras comunitárias. Na verdade, a introdução do capitalismo nos campos assentou numa imensa tragédia fundada na expoliação de parte substancial da população. Foi este roubo que permitiu construir o proletariado e o desenvolvimento da industrialização, bem como a literatura de Charles Dickens.
Ora o que é importante sublinhar não é o resultado local (um resultado com repercussões globais) desse cercamento de terras, mas a natureza seminal do facto. Quando, nos dias de hoje, se privatizam os bens comuns (a electricidade, a água, a educação, etc.) estamos perante acontecimentos de índole semelhante à Lei dos Cercados e com consequências idênticas, o desapossamento dos povos daquilo que é comunitário, a entrega do bem comum a grupos privados que, a partir de então, gerirão esses bens não de acordo com os interesses das populações, mas dos gráficos que indicam os seus lucros e interesses privados. Onde a água foi privatizada as pessoas já começaram a descobrir o embuste e a tragédia que há nesta retórica. Assistimos, nesta hora histórica, ao cercamento de tudo o que é comum. O triunfo do capitalismo total e da ideologia centrada na propriedade privada significará, na verdade, a desapropriação de grande parte da população. A lei fará o que for necessário para que isso aconteça.
Por cá tivemos a Lei das Sesmarias que, em pleno século XIV, visava o efeito contrário e que foi sendo gradualmente abandonada.
ResponderEliminarQuanto ao outro cerco. "Há que fazer-nos ao mar ou ficaremos cercados".
Abraço
Provavelmente ficaremos mesmo cercados.
EliminarAbraço