O romance de Javier Marías é, ante de mais, uma reflexão
prática sobre o que é a literatura, em especial o género romanesco. Há no
romance, como há muito foi salientado por Milan Kundera, uma contraposição com
a filosofia. Se em Descartes, no início da era moderna, se procura a certeza
fundada no que é claro e distinto, se múltiplas tradições filosóficas até aos
nossos dias se instalaram nesse registo de busca de uma verdade, o romance,
pelo contrário, vive da incerteza, da obscuridade e da indiferenciação. É este
registo que deliberadamente Javier Marías explora em Os Enamoramentos, um romance de 2011. A primeira frase da obra
torna de imediato claro esse registo. A narradora, Maria Dolz, começa a
narrativa dizendo A última vez que vi
Miguel Desvern ou Daverne foi também a última vez que a mulher, Luísa, o viu.
A imprecisão do nome de Miguel é a chave para o leitor entrar no texto.
Aparentemente, a trama gira em torno do assassinato de
Desvern ou Davern, um esfaqueamento perpetrado por um sem-abrigo, meio louco, e
tomado pela polícia como um acaso, um azar da vítima estar naquele lugar àquela
hora. É quando vê a notícia no jornal que Maria descobre o nome dele, embora o
conhecesse e à mulher há muito, espiando-os da mesa do café onde todos iam. O
estado de enamoramento que o casal apresentava tinha chamado a sua atenção e
dedicara-se durante todo esse tempo a um discreto embora persistente e fantasioso
voyeurismo. Este enamoramento
modelar, que funciona para Maria Dolz como um arquétipo, é construído por ela
não por uma investigação objectiva, não por quaisquer provas consistentes, mas
pela apreensão visual de um comportamento no espaço público, embora
circunscrito, de um café e das adições fantasiosas que uma imaginação produz em
resposta a um desejo erótico que a realidade teima em não satisfazer.
O desejo de se aproximar de Luísa, essa personagem sombra
que, como tal, assombra todo o romance, fá-la encontrar Javier Díaz-Varela, o
melhor amigo do assassinado e agora protector da viúva. Este, enamorado de
Luísa, espera a hora em que ela feche a porta por onde entra a memória
fantasmática do marido e a abra para o seu desejo. É neste encontro que nasce
um novo enamoramento, o de Maria por Javier, embora sem esperança de passar
para além de uma aventura com destino marcado. Esta aventura permite, porém, à
narradora perceber que o assassinato acidental Miguel talvez não o tivesse
sido, mas decorresse antes de um plano cuidadosamente meditado por Javier. O
pior, porém, é que mesmo sendo esse o caso, ela não sabe as verdadeiras razões
que o terão movido, se um pacto com o amigo, se o desejo pela mulher deste.
O que torna o romance de Marías particularmente interessante
é o facto dele pegar em dois subgéneros romanescos – um trivial romance de amor
e um vulgar thriller policial – e conduzir
uma meditação sobre a natureza da arte do romance e da sua relação com a
verdade e a certeza do que se passa nas vidas humanas. Se nas ciências da
natureza ainda será possível aspirar a um conhecimento objectivo, embora
revisível, da realidade, nos assuntos humanos, a única coisa que existe são
subjectividades que interpretam os acontecimentos a partir do ponto de vista onde
se encontram, nunca sendo claras nem as motivações que movem os actores nem,
tão pouco, os actos que estes executam. Pode-se ler este romance, sem o
violentar, como um exercício de desconstrução das narrativas jurídicas, do
valor dos procedimentos que articulam o processo jurídico, da probidade das
provas e da pretensão de condenar alguém baseado na verdade dos factos.
O caso de nunca se descobrir a verdade sobre a morte daquele
cujo nome era incerto não se deverá, deste modo, à incapacidade de investigação
ou mesmo a um truque literário para deixar ao leitor a possibilidade de
continuar a obra, completando-a e esclarecendo na sua imaginação recriadora o
que se teria passado, mas à própria inexistência de uma verdade. Aliás, isso é
reforçado pelo próprio Javier que, na sua ligação fortuita com Maria, fala da
novela de Balzac, O Coronel Chabert,
um herói das guerras napoleónicas que, como D. João de Portugal, no Frei Luís
de Sousa, é dado como morto. Esse equívoco permitiu à suposta viúva refazer a vida
e quando ele volta, descobre que está a mais, que não devia ter voltado do
lugar da morte. Esta obsessão pela obra de Balzac torna ainda mais obscuro o
enredo, porque o leitor não deixará de se interrogar se na verdade o marido de
Luísa terá efectivamente morrido. É apenas uma leve suspeita, mas no intrincado
das relações humanas não há estatuto epistémico mais elevado que o da suspeita.
Bom dia:- Acredito que seja um bom romance que deixe o leitor na expectativa até ao fim.
ResponderEliminar.
Deixando cumprimentos
É na verdade um bom romance.
EliminarCumprimentos
Texto lido com muito interesse.
ResponderEliminarUm abraço
Obrigado.
EliminarAbraço
passei por aqui ontem e li o post na diagonal porque ainda não tinha terminado de ler "os enamoramentos" e tive receio de algum spoiler :D
ResponderEliminarÉ o 2º livro dele que leio (Coração tão Branco, o 1º) e realmente são deliciosamente intrigantes todas as considerações feitas à volta das histórias.
https://gatoaurelio.blogspot.com/2020/06/o-enamoramento-e-insignificante-mas-em.html
Este é o primeiro que leio de Marías. Gostei.
EliminarTento evitar o spoiler, mas nem sempre é fácil.