Guillermo Pérez Villalta, Aquí y allí, 1989 |
Numa feira de velharias, um homem
alto, com um boné que se usaria nos anos cinquenta do século passado, vende uns
espelhos insólitos, daqueles que havia nas casas de banho de gente menos tocada
pela sorte, por cima do lavatório, para os homens fazerem a barba vigiando os
gestos, a precisão da lâmina no recorte da face, e as mulheres pentearem os
cabelos, se tinham de ir a algum sítio mais respeitável, uma visita ao médico
ou ao padre para confissão, uma loja para comprar alguma extravagância fora das
necessidades do dia-a-dia. Neles, rapazes e raparigas viam-se e mediam a sua
beleza, contemplavam-se sem pudor, uns com placidez, outros com fúria. Agora
ninguém compra espelhos desses e o vendedor, com ar de pertencer a uma época
que expirou há muito, reinventou-os para algum apreciador de curiosidades e
coisas destituídas de sentido. Foram pintados com cenas do quotidiano e quem se
olhar neles vê o mundo, como se o mundo fosse a imagem de cada um. O homem fala
devagar, não força a compra, apenas sorri. É um trabalho de artista, di-lo sem
hesitação e expressa-o na face bem escanhoada, que contrasta com o colarinho
amarrotado da camisa, a saltar por cima da gola do casaco. Há nestas pinturas
uma certa propensão para multidões, gente que se encontra ao acaso em ruas e
praças, mas também cenas onde as pessoas se reúnem sob o desígnio de algum
objectivo comum, comícios, procissões, jogos de futebol. Noutros espelhos, em
menor número, observam-se cenas domésticas, algumas naturezas mortas, uma
família reunida à volta de uma telefonia, como se diria há muito, um pai
sentado a fumar, enquanto lê o jornal e o filho rebola pelo chão. O vendedor
compõe a gravata, abotoa e desabotoa o casaco, que em tempos terá tido alguma
glória, boa fazenda, agora surrada, quase no fio. O rosto anguloso contrasta
com o de uma mulher, rubicundo e redondo, pintada num dos espelhos. A mão dela
ficou presa na eternidade, quando ainda se deslocava para a cabeça onde ia
compor os cabelos, ajeitar o gancho que os prendia. Um cliente, homem também
ele de outra era, louva o artista, qual o preço daquele ali o fundo, pergunta
enquanto aponta para um espelho pintado, preso a um escaparate no extremo
oposto. É muito caro, diz, quando o vendedor lhe revela o preço, entre olhares
esperançados, treinados na avaliação de quem se propõe comprar. Metade disso,
alvitra o apreciador de espelhos pintados. O marchand sorri com condescendência, passa mão pela testa. É um
trabalho artístico e é preciso pagar o engenho. Silêncio, não há resposta. Para
si, vendo-o um pouco mais barato, um acordo para ficarmos a meio caminho entre
o que peço e o que oferece. É uma questão de justiça e, na verdade, faço-lhe,
diz com a voz pausada, um favor. Desenha-se no ar um clima de hesitação, as
partes avaliam-se, medem desejos e necessidades. O cliente aquiesce e é sua a
obra de arte, um espelho pintado onde se vêem duas maçãs avermelhadas sobre um
prato verde a imitar uma couve lombarda. O vendedor embrulha a obra com
cuidado, protege-a dos choques que o caminho possa trazer, envolve-a em folhas
de jornal, que cobre com papel pardo e remata o empacotamento colocando a peça
dentro de um saco de plástico azul desmaiado. Para que chegue a casa sem se
partir, remata. O outro diz que sim com a cabeça e sorri. Pega no que agora é
seu e afasta-se em silêncio, talvez a fantasiar sobre o préstimo a dar àquele
espelho onde ninguém se há-de querer remirar.
Muito interessante.
ResponderEliminarUm abraço
Muito obrigado.
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