sábado, 27 de junho de 2020

Descrições fenomenológicas 51. Espelhos pintados

Guillermo Pérez Villalta, Aquí y allí, 1989

Numa feira de velharias, um homem alto, com um boné que se usaria nos anos cinquenta do século passado, vende uns espelhos insólitos, daqueles que havia nas casas de banho de gente menos tocada pela sorte, por cima do lavatório, para os homens fazerem a barba vigiando os gestos, a precisão da lâmina no recorte da face, e as mulheres pentearem os cabelos, se tinham de ir a algum sítio mais respeitável, uma visita ao médico ou ao padre para confissão, uma loja para comprar alguma extravagância fora das necessidades do dia-a-dia. Neles, rapazes e raparigas viam-se e mediam a sua beleza, contemplavam-se sem pudor, uns com placidez, outros com fúria. Agora ninguém compra espelhos desses e o vendedor, com ar de pertencer a uma época que expirou há muito, reinventou-os para algum apreciador de curiosidades e coisas destituídas de sentido. Foram pintados com cenas do quotidiano e quem se olhar neles vê o mundo, como se o mundo fosse a imagem de cada um. O homem fala devagar, não força a compra, apenas sorri. É um trabalho de artista, di-lo sem hesitação e expressa-o na face bem escanhoada, que contrasta com o colarinho amarrotado da camisa, a saltar por cima da gola do casaco. Há nestas pinturas uma certa propensão para multidões, gente que se encontra ao acaso em ruas e praças, mas também cenas onde as pessoas se reúnem sob o desígnio de algum objectivo comum, comícios, procissões, jogos de futebol. Noutros espelhos, em menor número, observam-se cenas domésticas, algumas naturezas mortas, uma família reunida à volta de uma telefonia, como se diria há muito, um pai sentado a fumar, enquanto lê o jornal e o filho rebola pelo chão. O vendedor compõe a gravata, abotoa e desabotoa o casaco, que em tempos terá tido alguma glória, boa fazenda, agora surrada, quase no fio. O rosto anguloso contrasta com o de uma mulher, rubicundo e redondo, pintada num dos espelhos. A mão dela ficou presa na eternidade, quando ainda se deslocava para a cabeça onde ia compor os cabelos, ajeitar o gancho que os prendia. Um cliente, homem também ele de outra era, louva o artista, qual o preço daquele ali o fundo, pergunta enquanto aponta para um espelho pintado, preso a um escaparate no extremo oposto. É muito caro, diz, quando o vendedor lhe revela o preço, entre olhares esperançados, treinados na avaliação de quem se propõe comprar. Metade disso, alvitra o apreciador de espelhos pintados. O marchand sorri com condescendência, passa mão pela testa. É um trabalho artístico e é preciso pagar o engenho. Silêncio, não há resposta. Para si, vendo-o um pouco mais barato, um acordo para ficarmos a meio caminho entre o que peço e o que oferece. É uma questão de justiça e, na verdade, faço-lhe, diz com a voz pausada, um favor. Desenha-se no ar um clima de hesitação, as partes avaliam-se, medem desejos e necessidades. O cliente aquiesce e é sua a obra de arte, um espelho pintado onde se vêem duas maçãs avermelhadas sobre um prato verde a imitar uma couve lombarda. O vendedor embrulha a obra com cuidado, protege-a dos choques que o caminho possa trazer, envolve-a em folhas de jornal, que cobre com papel pardo e remata o empacotamento colocando a peça dentro de um saco de plástico azul desmaiado. Para que chegue a casa sem se partir, remata. O outro diz que sim com a cabeça e sorri. Pega no que agora é seu e afasta-se em silêncio, talvez a fantasiar sobre o préstimo a dar àquele espelho onde ninguém se há-de querer remirar.

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