Publicado em 1944, o romance Alcateia, de Carlos de Oliveira, teve uma segunda edição revista em1945, não existindo qualquer outra posterior, ao contrário dos restantes quatro romances do autor. Se Casa na Duna, de 1943, se centrava numa família específica de proprietários, para a qual o escritor, de acordo com a tradição rural portuguesa, usou a metáfora da casa, neste romance, apesar do problema da casa, enquanto continuidade familiar, não estar ausente, a metáfora da alcateia coloca o leitor de imediato perante um universo social mais amplo e complexo, mas por certo não menos fechado. O romance é um retrato da oclusão das micro-sociedades da província portuguesa, neste caso do universo da Gândara. Um mundo fechado sobre si, impenetrável, alimentado por relações onde o cerramento aproxima as pessoas e as diferenças sociais introduzem distanciamentos inultrapassáveis.
A penúria da terra gandaresa açoitada pelas secas gera no grupo social uma divisão extremada, uma ruptura na alcateia. De um lado, um conjunto de homens que formam um bando de assaltantes e que lançam o terror por toda a Gândara. No outro lado, aquilo a que se poderia chamar as elites locais que disputam, em torno dos interesses – grandes ali, embora miseráveis se olhados de fora –, os pequenos poderes, gerem as intrigas, as pequenas aversões e os grandes ódios. O problema desta divisão social é que ela acaba por ser estereotipada. Apesar de no bando de assaltantes também existir disputa e rivalidade, a forma como são construídas personagens mostra-os pessoas dotadas de uma bondada natural, que a sociedade, a vida e a sorte acaba por empurrar para o crime, numa formulação do mito do bom selvagem de Rousseau. Apesar de tudo, há neles vínculos que ultrapassam os limites conjunturais dos interesses e são esses laços que, ao serem traídos, geram uma violência insuportável. No outro lado, na outra alcateia, não há vínculos, apenas interesses e conflitos em torno dos interesses, antagonismos, dissimulação, cálculo, cinismo. A escassez, ao tocar também as elites locais, torna-as impiedosas e em conflito permanente entre si. No entanto, as personagens surgem como meros estereótipos, sem complexidade, sem dúvidas sobre o caminho a tomar, sem profundidade subjectiva. Traços de complexidade subjectiva emergem em alguns assaltantes e também numa personagem secundária, o filho do administrador da vila. Não estamos perante um épico da luta de classes, mas de uma leitura social que se esforça por enquadrar as personagens em arquétipos existentes a priori.
Para além da pobreza e da mesquinhez, a sensação de oclusão é dada por dois sinais. Por um lado, a ausência quase total de qualquer referência ao mundo fora da Gândara. O livro é publicado durante a segunda grande guerra, mas os acontecimentos da política internacional não são sequer aflorados, como se o espaço e o tem romanescos fossem não o fruto de uma História, mas o resultado de um destino que não é tocado pelas grandes tragédias que afligem a humanidade. Ali, naquele mundo autárquico, bastam os pequenos dramas. Um segundo sinal dessa oclusão é dado pela reacção do administrador e da mulher perante um amor de praia do filho. O problema é que ela era uma rapariga da cidade, e uma rapariga da cidade é demasiado senhora do seu nariz, tem iniciativa excessiva. A cidade permanece sempre por identificar, mas o facto dela vir da cidade causaria uma perturbação excessiva que o pequeno mundo da Gândara não conseguiria acomodar. O rapaz é coagido pelos pais a terminar o namoro e, incapaz de os enfrentar, cede ao seu desejo. Pode haver dois níveis de leitura desta oclusão do universo romanesco. Uma benévola dirá que estamos perante uma alegoria sobre a situação de Portugal. A clausura do ambiente social da Gândara não é outra coisa senão uma imagem concentrada de um país fechado sobre si mesmo. Uma leitura menos benévola sublinhará a natureza paroquial do romance, o seu pendor regionalista.
Um dos traços mais interessantes da obra, embora não constitua o seu objecto central, surge da relação entre Fernando e o pai, o administrador da vila, o representante dos poderes locais. A disputa em torno do namoro com a rapariga da cidade vai levar a um afastamento entre pai e filho. O sentido da vida do pai era o de transmitir uma posição e uma casa sólida ao filho, este, todavia, parece afastar-se decisivamente dele e do seu universo, aniquilando o sentido da sua existência. Em Coimbra, onde Fernando estuda, as companhias parecem levá-lo para outro mundo, dando-lhe outra visão da realidade, das relações sociais e da própria vida. Essa é a única fresta –pequena na economia do romance – para um além da Gândara e do mundo paroquial onde decorre a acção romanesca.
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