quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Perfis 4. A rapariga do cabaret

Arnold Genthe, Modern Torso, ca. 1918
Brilhavam os sapatos cor de âmbar. Os saltos tornavam-na mais esguia. Imóvel, ela estava ali para ser observada, para que olhos a percorressem com demora, sem a precipitação de um desejo cru e pouco meditado. Um manto de penas, talvez uma sugestão de leveza ou uma promessa de voo, cobria-lhe o lado direito, mas o esquerdo entregava-se nu à contemplação. O braço contornava o seio, fazendo-o reverberar, sublinhando-lhe a textura de seda e uma luz intensa, juramento de um prazer tão próximo, que os olhos meridionais, estrelas vacilantes, desmentiam. A nádega sobressaía ligeiramente, num equilíbrio que evitava a exuberância da provocação, desenhando-se com a difícil contenção que escarnece o desejo primitivo e sugere a necessidade de uma longa aprendizagem da harmonia dos corpos e da disposição dos espíritos. A mão que segurava o manto acima do seio desnudo exibia dedos longos, tão frágeis e imponderáveis que faziam lembrar uma vocação espiritual abandonada. O cabelo, de um castanho escuro, cingia-lhe a cabeça ao abrir-se a partir de um dissimulado risco lateral, para lhe cobrir a orelha e parte da testa, recortando um triângulo irregular acima da sobrancelha esquerda. O rosto hesitava longamente entre o ovalado e o redondo, mantendo-se num equilíbrio instável, de sentido difícil de descodificar. O nariz fino e voluntarioso esculpia-lhe uma sombra ascética no semblante. A boca, porém, apressava-se a contrariá-lo, ao oferecer uns lábios carnudos, recortados, uns lábios que chamavam outros, sugerindo um ardor que brotava do fundo do ventre e florescia ali, chamando o desejo de quem os observava e se deixava arrastar na ilusão voluptuosa, na insinuação de uma entrega que o tempo havia de desmentir.  

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