Um dos mais inusitados e inesperados romances que poderia
encontrar é este Volúpia que Salva, publicado em 1926, mesmo a
identificação do autor é relativamente problemática. O livro está assinado por
T. Noronha e alguns catálogos de bibliotecas municipais atribuem-no a Tomás de
Noronha (1870-1934), autor de umas memórias denominadas De Capa e Batina
(1929), que versam sobre a boémia coimbrã. Ambos os livros são publicados pelo
mesmo editor, J. Rodrigues & Cª, sediado na Rua do Ouro, em Lisboa. A
entrada referente a D. Tomás Maria de Noronha na Grande Enciclopédia Portuguesa
e Brasileira refere o texto sobre os tempos de Coimbra e outras pequenas obras
sem relevo, mas não o romance. Este terá sido bastante lido na época, pois foram
feitas pelo menos três edições sucessivas de mil exemplares cada. O que terá
apagado este romance da memória literária nacional e até da referência
enciclopédica ao seu eventual autor?
O romance é bem arquitectado, possui uma trama que conduz a
um desenlace final significante, o autor expressa-se bem em português, apesar
de não seguir a simplificação ortográfica de 1911, possui uma cultura sólida,
constrói personagens que possuem pensamento próprio, uma delas inclusive um
pensamento filosófico coerente e fundamentado no espírito de certas correntes
filosóficas com boa fortuna na época. Uma das razões terá sido que a obra se
organiza em torno de uma relação homoerótica feminina, decorrendo todo ele num
universo social de matiz homossexual. O segundo milhar de exemplares acabou de
ser impresso a 28 de Maio de 1926, o dia em que um golpe militar pôs fim à
primeira República. Se ainda foi possível a impressão de pelo menos um terceiro
milhar, os tempos deixaram de ser propícios a estas derivas literárias, as
quais, como se verá, possuem uma tonalidade decadentista, relativamente tardia,
que será sempre desprezível para o novo ambiente político, marcado pelo
puritanismo nos costumes, e também para o movimento literário que, nos finais
dos anos trinta do século passado, foi animado por escritores oposicionistas, o
neo-realismo.
Do ponto de vista epocal, o romance situa-se nos finais da
República e pode ser entendido como um retrato da desagregação da aristocracia
e, curiosamente, da própria República. A tensão nasce das pretensões de duas
mulheres, Octávia Rodrigues Saavedra e Valéria Prado, que se apaixonam
mutuamente, em penetrarem nos círculos sociais mais elevados da capital, em
busca de reconhecimento. O problema não estará no caso amoroso entre elas, mas
na sua presunção, apesar do dinheiro que uma parece ter e do talento artístico
da outra, ao quererem aceder a um Olimpo social muito restrito. Este é
um dos pontos onde o romance vinca a sua tonalidade decadentista. Uma crítica
acerada ao mundo burguês, com a sua moral do dever, o sublinhar das
prerrogativas aristocráticas, reais ou imaginárias, e a apologia da evasão do
mundo quotidiano. O leitor depara-se com um mundo fútil, perdido entre prazeres
que se pretendem refinados e a mais mesquinha coscuvilhice. Deste ponto de
vista, a mera exposição da vida destas camadas sociais torna-se, ipso facto,
uma crítica social de natureza irónica. Dentro dessa ironia, pode-se ainda
observar a invenção de um país, que desempenha um papel considerável na trama
narrativa, a Sapholandia, um país europeu cuja capital é Inversóvia.
Contudo, o toque decadentista mais exacerbado é dado pela
personagem José Dardo, pertencente a uma das casas mais importantes da capital
portuguesa. Ele é o grande pensador e orquestrador de um mundo onde a
homossexualidade é um instrumento central para atingir os fins de que ele, o
esteta por excelência, se sente como o grande e derradeiro anunciador. Dardo
faz uma leitura das paixões humanas como caminho para a redenção, através do
arrependimento. É preciso abandonar as abstinências e o controlo das paixões
para que estas se refinem e percam a animalidade, cujo fito é a reprodução da
vida. Toda a filosofia e Dardo é um hino ao decadentismo, onde nem falta o
consumo de ópio. Uma sensibilidade hiperestilizada, um refinamento
aristocrático do gosto, a recusa dos prazeres das plebes presas ao imperativo
da procriação. Fundamentalmente, a recusa da sexualidade entre homem e mulher
como caminho para o fim da espécie.
O romance é suficientemente bem escrito para deixar o leitor
na dúvida se está perante uma apologia da morte e do desaparecimento da
humanidade, através da educação dos homens para uma vida esteticamente viciosa,
na qual a única sexualidade admissível é a que desvia o prazer da possibilidade
da fecundação, ou se o desenvolvimento da trama narrativa acaba por ser uma
exposição quase lógica das consequências nefastas dos princípios decadentes. Princípio
esses que animam aquelas personagens, todas elas presas a uma necessidade de
serem outra coisa do que aquilo que são, de se evadirem da realidade brutal da
existência num mundo artificioso, onde a volúpia é o caminho para a morte. Estar-se-á
perante uma crítica da sociedade e dos valores do pós-guerra, dos gloriosos
anos vinte, ou, pelo contrário, o romance é um exercício literário de defesa
dessa modernidade estética individualista e em contradição com o senso-comum?
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.