domingo, 6 de setembro de 2020

Tomás de Noronha, Volúpia que Salva


Um dos mais inusitados e inesperados romances que poderia encontrar é este Volúpia que Salva, publicado em 1926, mesmo a identificação do autor é relativamente problemática. O livro está assinado por T. Noronha e alguns catálogos de bibliotecas municipais atribuem-no a Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias denominadas De Capa e Batina (1929), que versam sobre a boémia coimbrã. Ambos os livros são publicados pelo mesmo editor, J. Rodrigues & Cª, sediado na Rua do Ouro, em Lisboa. A entrada referente a D. Tomás Maria de Noronha na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira refere o texto sobre os tempos de Coimbra e outras pequenas obras sem relevo, mas não o romance. Este terá sido bastante lido na época, pois foram feitas pelo menos três edições sucessivas de mil exemplares cada. O que terá apagado este romance da memória literária nacional e até da referência enciclopédica ao seu eventual autor?

O romance é bem arquitectado, possui uma trama que conduz a um desenlace final significante, o autor expressa-se bem em português, apesar de não seguir a simplificação ortográfica de 1911, possui uma cultura sólida, constrói personagens que possuem pensamento próprio, uma delas inclusive um pensamento filosófico coerente e fundamentado no espírito de certas correntes filosóficas com boa fortuna na época. Uma das razões terá sido que a obra se organiza em torno de uma relação homoerótica feminina, decorrendo todo ele num universo social de matiz homossexual. O segundo milhar de exemplares acabou de ser impresso a 28 de Maio de 1926, o dia em que um golpe militar pôs fim à primeira República. Se ainda foi possível a impressão de pelo menos um terceiro milhar, os tempos deixaram de ser propícios a estas derivas literárias, as quais, como se verá, possuem uma tonalidade decadentista, relativamente tardia, que será sempre desprezível para o novo ambiente político, marcado pelo puritanismo nos costumes, e também para o movimento literário que, nos finais dos anos trinta do século passado, foi animado por escritores oposicionistas, o neo-realismo.

Do ponto de vista epocal, o romance situa-se nos finais da República e pode ser entendido como um retrato da desagregação da aristocracia e, curiosamente, da própria República. A tensão nasce das pretensões de duas mulheres, Octávia Rodrigues Saavedra e Valéria Prado, que se apaixonam mutuamente, em penetrarem nos círculos sociais mais elevados da capital, em busca de reconhecimento. O problema não estará no caso amoroso entre elas, mas na sua presunção, apesar do dinheiro que uma parece ter e do talento artístico da outra, ao quererem aceder a um Olimpo social muito restrito. Este é um dos pontos onde o romance vinca a sua tonalidade decadentista. Uma crítica acerada ao mundo burguês, com a sua moral do dever, o sublinhar das prerrogativas aristocráticas, reais ou imaginárias, e a apologia da evasão do mundo quotidiano. O leitor depara-se com um mundo fútil, perdido entre prazeres que se pretendem refinados e a mais mesquinha coscuvilhice. Deste ponto de vista, a mera exposição da vida destas camadas sociais torna-se, ipso facto, uma crítica social de natureza irónica. Dentro dessa ironia, pode-se ainda observar a invenção de um país, que desempenha um papel considerável na trama narrativa, a Sapholandia, um país europeu cuja capital é Inversóvia.

Contudo, o toque decadentista mais exacerbado é dado pela personagem José Dardo, pertencente a uma das casas mais importantes da capital portuguesa. Ele é o grande pensador e orquestrador de um mundo onde a homossexualidade é um instrumento central para atingir os fins de que ele, o esteta por excelência, se sente como o grande e derradeiro anunciador. Dardo faz uma leitura das paixões humanas como caminho para a redenção, através do arrependimento. É preciso abandonar as abstinências e o controlo das paixões para que estas se refinem e percam a animalidade, cujo fito é a reprodução da vida. Toda a filosofia e Dardo é um hino ao decadentismo, onde nem falta o consumo de ópio. Uma sensibilidade hiperestilizada, um refinamento aristocrático do gosto, a recusa dos prazeres das plebes presas ao imperativo da procriação. Fundamentalmente, a recusa da sexualidade entre homem e mulher como caminho para o fim da espécie.

O romance é suficientemente bem escrito para deixar o leitor na dúvida se está perante uma apologia da morte e do desaparecimento da humanidade, através da educação dos homens para uma vida esteticamente viciosa, na qual a única sexualidade admissível é a que desvia o prazer da possibilidade da fecundação, ou se o desenvolvimento da trama narrativa acaba por ser uma exposição quase lógica das consequências nefastas dos princípios decadentes. Princípio esses que animam aquelas personagens, todas elas presas a uma necessidade de serem outra coisa do que aquilo que são, de se evadirem da realidade brutal da existência num mundo artificioso, onde a volúpia é o caminho para a morte. Estar-se-á perante uma crítica da sociedade e dos valores do pós-guerra, dos gloriosos anos vinte, ou, pelo contrário, o romance é um exercício literário de defesa dessa modernidade estética individualista e em contradição com o senso-comum?

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