quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Descrições fenomenológicas 58. Entre ruínas 2

Agnes, Martin, Sin título No. 2, 1977

De tudo o que um dia preencheu aquela divisão, um quarto, por certo, resta uma poltrona. É possível que, enquanto a casa foi habitada, quem lá vivia empregasse o francês fauteuil, mas isso é uma conjectura derivada do gosto afrancesado com que a vivenda foi arquitectada. No chão assoalhado, as tábuas estão todas no lugar. Nem o tempo nem a humidade foram suficientes para as levantar. Os efeitos do caruncho, porém, são já visíveis, formando ilhas escuras num mar em que os tons castanhos acinzentados se tornaram dominantes. Vê-se no centro um sistema de dunas de caliça, cuja origem se encontra num buraco do tecto, onde houve um terminal do sistema eléctrico, que alimentava um candeeiro que alguém terá levado. Junto às paredes, as dunas são substituídas por um areal raso. Naquelas são visíveis rachas e um olhar distraído diria que se formou um sistema hidrográfico, ao qual não faltam sequer alguns lagos. Os sítios que um dia suportaram o interruptor e as tomadas eléctricas despiram-se e são agora buracos negros circulares, poços que penetram as paredes, dos quais desapareceram, talvez roubados, os fios de cobre que transportavam a energia eléctrica. A porta foi retirada e a luz que chega da rua, por uma janela existente na parede oposta, é apenas suficiente para deixar perceber que o corredor não está em melhores condições que o quarto. Os lambris junto ao chão são pasto de fungos e, também eles, vítimas da fome desvairada dos carcomas, vendo-se em toda a volta montículos de pó de madeira. Em alguns sítios, o lambril já se despegou da parede, deixando ver o reboco que durante anos escondeu. A poltrona forrada por um tecido aveludado não deixa perceber a cor original. Rasgões, buracos e até pequenos cortes, tudo isso coberto pelo pó esbranquiçado da caliça, configuram um território inóspito. Há muito que ninguém ali se senta, nem os eventuais saqueadores de ruínas ou algum vagabundo que, em noite de tempestade, se acolha na casa. Espera que o tempo passe, que a casa seja reconstruída ou demolida, para então merecer uma última atenção, quando lhe pegarem para a levar para a lixeira.

 

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