Agnes, Martin, Sin título No. 2, 1977 |
De tudo o que
um dia preencheu aquela divisão, um quarto, por certo, resta uma poltrona. É
possível que, enquanto a casa foi habitada, quem lá vivia empregasse o francês fauteuil,
mas isso é uma conjectura derivada do gosto afrancesado com que a vivenda foi
arquitectada. No chão assoalhado, as tábuas estão todas no lugar. Nem o tempo
nem a humidade foram suficientes para as levantar. Os efeitos do caruncho,
porém, são já visíveis, formando ilhas escuras num mar em que os tons castanhos
acinzentados se tornaram dominantes. Vê-se no centro um sistema de dunas de
caliça, cuja origem se encontra num buraco do tecto, onde houve um terminal do
sistema eléctrico, que alimentava um candeeiro que alguém terá levado. Junto às
paredes, as dunas são substituídas por um areal raso. Naquelas são visíveis
rachas e um olhar distraído diria que se formou um sistema hidrográfico, ao
qual não faltam sequer alguns lagos. Os sítios que um dia suportaram o
interruptor e as tomadas eléctricas despiram-se e são agora buracos negros
circulares, poços que penetram as paredes, dos quais desapareceram, talvez
roubados, os fios de cobre que transportavam a energia eléctrica. A porta foi
retirada e a luz que chega da rua, por uma janela existente na parede oposta, é
apenas suficiente para deixar perceber que o corredor não está em melhores
condições que o quarto. Os lambris junto ao chão são pasto de fungos e, também
eles, vítimas da fome desvairada dos carcomas, vendo-se em toda a volta montículos
de pó de madeira. Em alguns sítios, o lambril já se despegou da parede,
deixando ver o reboco que durante anos escondeu. A poltrona forrada por um
tecido aveludado não deixa perceber a cor original. Rasgões, buracos e até
pequenos cortes, tudo isso coberto pelo pó esbranquiçado da caliça, configuram
um território inóspito. Há muito que ninguém ali se senta, nem os eventuais
saqueadores de ruínas ou algum vagabundo que, em noite de tempestade, se acolha
na casa. Espera que o tempo passe, que a casa seja reconstruída ou demolida,
para então merecer uma última atenção, quando lhe pegarem para a levar para a
lixeira.
Magnifica descrição.
ResponderEliminarUm abraço
Muito obrigado.
EliminarAbraço