segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Leo Perutz, O Cavaleiro Sueco


O romance O Cavaleiro Sueco (1936), do escritor austríaco, de origem sefardita, Leo Perutz (1882-1957), é uma reflexão sobre a identidade e o destino. Melhor, é uma reflexão sobre a fragilidade e o equívoco das identidades e a força do destino. Se se quiser eleger duas questões que o romance trabalha elas são quem é aquele que se cruza connosco? e o que cabe a cada um fazer e desempenhar na existência? O romance é a resposta a um enigma que afligiu, durante parte substancial da sua vida, a bela Maria Christine, nascida von Tornefeld, enviuvada von Rantzau, tornando-se von Blohme por um segundo matrimónio. O enigma nasce quando, ainda criança, o pai diz em casa que tem o dever, enquanto sueco, de ir combater na guerra que os suecos, no início do século XVIII, travavam contra os seus vizinhos. Foi-lhe dito, todavia, que apesar de o pai ir para muito longe, o seu veloz cavalo permitia-lhe vir secretamente vê-la. A verdade é que essa promessa impossível de ser cumprida foi cumprida. O pai visitava-a pela calada da noite, para logo desaparecer. No entanto, a certa altura chega um emissário do exército sueco com a notícia da derrota dos suecos e a morte do heróico cavaleiro von Tornefeld, tendo este sido enterrado já há três semanas. Maria Christine não acredita no mensageiro, pois ainda há dois ou três dias o pai a visitara de noite. Seria impossível ele estar morto. Haveria de voltar. Nunca voltou. As visitas secretas cessaram para sempre.

Para resolver o enigma que atormentou a existência de Maria Christine, o autor conta uma história de equívocos e trocas de identidade entre um ladrão perseguido pela justiça e um jovem aristocrata desertor do exército sueco. Esta troca de identidades, ocorrida num moinho e mediada por uma estranha personagem denominada o moleiro morto, entre seres pertencentes a estratos sociais tão diferenciados vai permitir que se perceba que as funções sociais constitutivas da identidade pessoal são facilmente reversíveis. Sem excessiva dificuldade o ladrão assume de forma convincente, perante terceiros, as funções e a vida de um aristocrata e, ao mesmo, tempo um aristocrata encontra um rumo para a sua existência ao assumir o destino de um ladrão. Nas circunstâncias onde decorre a sua nova vida, ambos passam muito bem por aquilo que não são. Desempenham os papéis sociais que os seus novos estatutos exigem sem que isso levante qualquer suspeita. O ladrão vivia entre a aristocracia como se de um aristocrata se tratasse, o aristocrata trabalhava nas fundições de um terrível bispo, que explorava os condenados que se refugiavam no seu território, sem que alguma vez fosse visto como outra coisa senão como um miserável condenado. O romance mostra que a identidade de cada um pouco tem que ver com o estatuto social. Este e facilmente reversível, pois não passa de mera representação teatral, papel que se assume e se representa mas que não se deve confundir com a identidade de cada um. À pergunta quem é aquele que se cruza connosco? a única resposta aceitável é a confissão da nossa ignorância. Conhecemos os papéis representados, não os actores que os representam.

O romance de Leo Perutz é uma espécie de fábula e como todas as fábulas esta também terá os seus ensinamentos. Devido a um conjunto de peripécias, os dois envolvidos na troca de identidades tornam-se a encontrar, encontro mais uma vez mediado pelo moleiro morto, personagem que representa a presença no romance do mundo encantado do mito e da superstição pré-iluminista, numa época em que a realidade, devido ao avanço da modernidade, começava a desencantar-se. Este encontro serve, na economia da narrativa, para uma nova troca de identidades. O ladrão volta à sua condição de ladrão e homem condenado e o aristocrata retorna à sua condição de cavaleiro sueco que procura juntar-se aos exércitos do rei da Suécia. As peripécias da fortuna, o jogo de acasos e de enganos, acaba por devolver cada um à sua anterior condição. Não se trata, porém, de uma mera reposição do estatuto social, mas do sublinhar de que ninguém tem o poder de fugir à sua condição ontológica, à sua natureza essencial, pois esta não é uma mera determinação social, mas algo muito mais fundo e anterior à condição social em que cada homem vive. Aquilo que cabe a cada um desempenhar na existência não deriva nem de si mesmo nem da sociedade, as ideias reguladoras das ideologias do século XIX e XX. Ninguém pode fugir à sua natureza ou ao seu destino. As peripécias da vida, os equívocos e os enganos servem apenas para fazer que cada um se acorde com o destino que lhe foi – seja pela divindade ou pela natureza – destinado. Por mais que dele fuja, é para ele que, através dessa fuga, se dirige. A resposta ao enigma que atormentou a vida de Maria Christine nascida von Tornefeld, aparentando por vezes ser uma comédia de enganos, não é outra coisa senão uma reflexão sobre a condição humana na Terra. Uma pequena (pouco mais de 200 páginas, na edição portuguesa) obra-prima.

2 comentários:

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.