O terceiro romance do ciclo Sonatas é a Sonata de
Primavera (1904). Do ponto de vista da história da personagem, o marquês de
Bradomín, esta obra é a narrativa de uma aventura amorosa mais antiga, ocorrida
ainda na juventude, quando o aristocrata é enviado pelo Papa à cidade ficcional
de Liguria para entregar uma mensagem a monsenhor Gaetani. Ao chegar ao palácio
dos Gaetani, encontra o prelado moribundo. Tendo sido reconhecido pela princesa
Gaetani, que o embalara quando criança, é convidado a permanecer no palácio. Aí
conhece as cinco filhas da princesa e apaixona-se por Maria del Rosario, a mais
velha. O problema é que esta estava para dar entrada num convento. Todo o
romance gira então à volta das tentativas do marquês para seduzir a futura
monja e da resistência que esta lhe opõe.
Como nas anteriores Sonatas o poder descritivo e
evocativo de Valle-Inclán é notável. Transporta o leitor para dentro do palácio.
Combina a descrição da dimensão física e arquitectónica do edifício com a sua
ambiência social e devocional, fundindo arte e vida como se fossem uma única
coisa. É nessa paisagem que o autor inscreve as deambulações de Eros, o jogo de
sedução do marquês visando a jovem filha da princesa e a resistência desta, a
qual é, ao mesmo tempo, o acordar para a realidade do amor humano, a qual
estava adormecida dentro de si. Este D. Juan feio, sentimental e católico –
como em velho se catalogou – emerge como a figura do tentador que vai acender,
no fundo do coração de Maria del Rosario, a tensão entre o amor por um homem e
o amor por Deus.
Este transe em que um coração se sente confrontado com a
necessidade de ter de escolher entre o amor humano e o divino é acompanhado por
um outro, já presente nas anteriores Sonatas. Trata-se da relação muito
próxima entre amor e morte. Não se trata, neste caso, tanto da morte dos
amantes ou de um deles, embora Xavier Bradomín, por causa do seu interesse pela
jovem, tenha sofrido uma tentativa de homicídio, certamente ordenada pela
princesa. Esta colocava um grande empenho na vocação religiosa da sua filha e
na entrada desta para o convento. A forma como o autor consegue estabelecer
esse laço entre Eros e Tanatos, no final da obra, é completamente inesperada,
afastando-se de modelos já explorados por autores como Shakespeare.
Com uma tonalidade decadentista, a trama narrativa mobiliza
elementos que tendem a pôr em questão tanto uma visão do mundo iluminista e
racionalista como uma outra de cariz católico e tradicional. O marquês, apesar
de se apresentar como um tradicionalista (um carlista) e como católico, nunca
deixa de ser uma personagem subversiva nesse mundo do catolicismo conservador,
de que ele se apresenta como advogado e agente. Na Sonata da Primavera
ele é alguém que está ao serviço do Papa, um enviado deste. No entanto, a sua
conduta é muito pouco católica. É tentado pela beleza da jovem, mas também se
percebe que a possibilidade desta se tornar uma virgem consagrada à divindade
constitui para ele um motivo de intensificação libidinal. Este cruzamento entre
sexo e religiosidade é ele mesmo ambíguo. Por um lado, parece inscrever-se no topos
provocatório – o recorrente épater le bourgeois do decadentismo – que a
literatura modernista desenvolve perante as tradições religiosas. Por outro,
todavia, não deixa de ser uma forma, ainda que indirecta ou invertida, de sublinhar
aquilo que há de sagrado e misterioso no desejo erótico.
Bradomín assume, no palácio dos Gaetani, a figura do grande
tentador. A princesa recebeu-o como um enviado de Deus – isto é, do seu
representante na Terra – e, quando se apercebe do interesse erótico na sua
filha, vê-o como o enviado do diabo. O que é corroborado por episódios onde intervém
uma bruxa, a qual permite a Bradomín evitar as armadilhas que contra a sua vida
são tecidas. No entanto, também aqui a arte de Valle-Inclán tem o poder de
deixar o leitor na incerteza. Em todo o romance, é-se confrontado com situações
ambíguas. O marquês ama Maria del Rosario ou apenas a vê como um mero objecto
sexual, uma presa, ainda por cima uma virgem a ser consagrada, para satisfazer
o seu instinto de caçador? Será um homem de Deus, como ele próprio se
identifica, ou uma figuração humana do grande tentador? Será um D. Juan ou
mascara-se apenas de D. Juan como uma estratégia de compensação? Será, num
outro âmbito, um aristocrata tradicionalista da velha cepa ou alguém que se
assumindo assim não deixa de ser, através da ironia, um desconstrutor da imagem
da velha aristocracia, completamente decadente. O que torna estes pequenos
romances notáveis é a combinação dos seus diálogos e descrições de ambiências
de grande esplendor literário com a ambiguidade com que a figura do marquês é
construída, é a capacidade de, ao mesmo tempo, apresentar uma personagem que
parece ser uma coisa e, através de uma subtil ironia, mostrar-se com sendo uma
outra. Como as outras, a Sonata de Primavera é um exercício refinado de
ambiguidade, uma obra de arte na composição de uma personagem complexa sob a
aparência de uma simplicidade e transparência que raiam a ingenuidade.
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