De acordo com o que é anunciado Cidade Infecta,
de Teresa Veiga, foi escrito durante o tempo de confinamento. É o segundo
romance da autora, embora ela possua, enquanto contista, um nome firmado e
premiado no mundo literário nacional, desde 1992. Apesar de ter sido escrito no
auge da pandemia, apesar dos títulos da obra, com a referência ao infeccioso, e
do último capítulo, o “Triunfo da Normalidade”, não se está perante uma
narrativa que se centre em acontecimentos provocados pela emergência do vírus que
actualmente perturba a vida um pouco por todo o lado. Se bem que o espaço onde
se desenrola a generalidade de a acção romanesca – uma cidade de província
denominada Oliveira – e o tempo de os acontecimentos serem indeterminados,
claramente não são recentes. Passam-se num país que para percorrer de carro os
150 km que separam Oliveira de Lisboa são necessárias três horas, num país em
que dez contos é uma pequena fortuna, num país em que ainda é possível ligar o
rádio e escutar Cândida Branca Flor. Deste ponto de vista, o romance é uma
escavação arqueológica da vida infecta.
Que infecção é essa que recai sobre a cidade, que não passa
de uma referência metonímica ao país? O romance tematiza a amizade entre duas
mulheres, as relações familiares, a vida conjugal, a violência sobre as
mulheres, as estratégias de sobrevivência, as relações adúlteras, as funções
sociais, o crime. Todos estes temas são, porém, modelações de uma desolação que
parece afectar não apenas as vidas das duas amigas e protagonistas centrais da
trama narrativa, mas todo o tecido social onde elas se movem, uma entre a
burguesia fabril e a outra no seio da pequena burguesia, ambas provincianas. É
uma realidade desoladora, mesmo se o desafogo material é grande. Esta desolação
parece ser o efeito de uma pequenez estrutural que a tudo toca e contamina. A
tudo falta qualquer coisa.
As duas mulheres – Raquel e Anabela – são, cada uma a seu
modo e no âmbito das suas relações sociais, arrivistas. Graças aos atributos
físicos e à forte personalidade, fazem casamentos acima do seu estatuto social,
e são ambas vistas de soslaio, se não desprezadas, pelos respectivos sogros. No
entanto, o que se torna patente é que fora desse arrivismo não há nada, a não
ser a pobreza, a da família de Anabela, ou a situação equívoca da mãe de
Raquel. O resto, as famílias ricas ou remediadas de Oliveira, faz parte também
ele de um arrivismo, apenas um pouco mais antigo, que não deixa de ser completamente
desolador. Se há uma tradição no país, essa é o arrivismo, mas este tem a sua
raiz na desolação que infecta toda a cidade.
Essa desolação que infecta a cidade – isto é, a sociedade em
geral – tem uma origem muito precisa. As mulheres portuguesas, talvez parte
substancial delas, mantêm casamentos desencantados. Entre a mitologia do
príncipe encantado e o homem disponível para estabelecer uma família há uma
enorme distância. O padrão sonhado e a realidade estão tão afastados que o
resultado é a pura desolação, enfrentada com mais ou menos cinismo, com mais ou
menos condescendência. A distância entre o desejo e a realidade mina a relação
conjugal, que acaba por se tornar o exercício de duas frustrações que correm
paralelas, cruzando-se por vezes através da violência verbal ou física. O
adultério, no caso o adultério feminino, é, então, uma estratégia de
sobrevivência e não, propriamente, o exercício de uma infidelidade.
É esta desolação – fundada na sombria pequenez da relação matrimonial
– que se torna uma mancha e, como tal, alastra por toda a sociedade. O romance
de Teresa Veiga é não apenas uma arqueologia que escava o terreno para
descobrir o que se esconde no fundo das relações humanas, mas ainda uma
hermenêutica da vida social, em que o elemento central é a interpretação do
casamento. É a disfunção amorosa – mais que a sexual – e a pequenez da vida
matrimonial que se espalham por toda a sociedade, seja na repartição onde
trabalha o marido de Anabela, seja na escola onde lecciona Raquel, seja no
mundo empresarial do marido desta. Em todos os espaços sociais que se visita na
leitura de Cidade Infecta sentimos sempre o mesmo exsudar da matéria
informe e pegajosa da desolação. Na verdade, uma pandemia e, como acontece em
todas as pandemias, acaba-se por voltar à normalidade, isto é, conviver com o
vírus, evitando, sempre que possível, o pior. E o pior está simbolizado na morte inexplicável de uma mulher que, desde o início e como uma ameaça, acompanha o destino das protagonistas. Essa aprendizagem do convívio com
o desolador é o máximo a que se pode aspirar. Dito de outra maneira, há que saber
ser infeliz e continuar viva.
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