terça-feira, 1 de setembro de 2020

Teresa Veiga, Cidade Infecta


De acordo com o que é anunciado Cidade Infecta, de Teresa Veiga, foi escrito durante o tempo de confinamento. É o segundo romance da autora, embora ela possua, enquanto contista, um nome firmado e premiado no mundo literário nacional, desde 1992. Apesar de ter sido escrito no auge da pandemia, apesar dos títulos da obra, com a referência ao infeccioso, e do último capítulo, o “Triunfo da Normalidade”, não se está perante uma narrativa que se centre em acontecimentos provocados pela emergência do vírus que actualmente perturba a vida um pouco por todo o lado. Se bem que o espaço onde se desenrola a generalidade de a acção romanesca – uma cidade de província denominada Oliveira – e o tempo de os acontecimentos serem indeterminados, claramente não são recentes. Passam-se num país que para percorrer de carro os 150 km que separam Oliveira de Lisboa são necessárias três horas, num país em que dez contos é uma pequena fortuna, num país em que ainda é possível ligar o rádio e escutar Cândida Branca Flor.  Deste ponto de vista, o romance é uma escavação arqueológica da vida infecta.

Que infecção é essa que recai sobre a cidade, que não passa de uma referência metonímica ao país? O romance tematiza a amizade entre duas mulheres, as relações familiares, a vida conjugal, a violência sobre as mulheres, as estratégias de sobrevivência, as relações adúlteras, as funções sociais, o crime. Todos estes temas são, porém, modelações de uma desolação que parece afectar não apenas as vidas das duas amigas e protagonistas centrais da trama narrativa, mas todo o tecido social onde elas se movem, uma entre a burguesia fabril e a outra no seio da pequena burguesia, ambas provincianas. É uma realidade desoladora, mesmo se o desafogo material é grande. Esta desolação parece ser o efeito de uma pequenez estrutural que a tudo toca e contamina. A tudo falta qualquer coisa.

As duas mulheres – Raquel e Anabela – são, cada uma a seu modo e no âmbito das suas relações sociais, arrivistas. Graças aos atributos físicos e à forte personalidade, fazem casamentos acima do seu estatuto social, e são ambas vistas de soslaio, se não desprezadas, pelos respectivos sogros. No entanto, o que se torna patente é que fora desse arrivismo não há nada, a não ser a pobreza, a da família de Anabela, ou a situação equívoca da mãe de Raquel. O resto, as famílias ricas ou remediadas de Oliveira, faz parte também ele de um arrivismo, apenas um pouco mais antigo, que não deixa de ser completamente desolador. Se há uma tradição no país, essa é o arrivismo, mas este tem a sua raiz na desolação que infecta toda a cidade.

Essa desolação que infecta a cidade – isto é, a sociedade em geral – tem uma origem muito precisa. As mulheres portuguesas, talvez parte substancial delas, mantêm casamentos desencantados. Entre a mitologia do príncipe encantado e o homem disponível para estabelecer uma família há uma enorme distância. O padrão sonhado e a realidade estão tão afastados que o resultado é a pura desolação, enfrentada com mais ou menos cinismo, com mais ou menos condescendência. A distância entre o desejo e a realidade mina a relação conjugal, que acaba por se tornar o exercício de duas frustrações que correm paralelas, cruzando-se por vezes através da violência verbal ou física. O adultério, no caso o adultério feminino, é, então, uma estratégia de sobrevivência e não, propriamente, o exercício de uma infidelidade.

É esta desolação – fundada na sombria pequenez da relação matrimonial – que se torna uma mancha e, como tal, alastra por toda a sociedade. O romance de Teresa Veiga é não apenas uma arqueologia que escava o terreno para descobrir o que se esconde no fundo das relações humanas, mas ainda uma hermenêutica da vida social, em que o elemento central é a interpretação do casamento. É a disfunção amorosa – mais que a sexual – e a pequenez da vida matrimonial que se espalham por toda a sociedade, seja na repartição onde trabalha o marido de Anabela, seja na escola onde lecciona Raquel, seja no mundo empresarial do marido desta. Em todos os espaços sociais que se visita na leitura de Cidade Infecta sentimos sempre o mesmo exsudar da matéria informe e pegajosa da desolação. Na verdade, uma pandemia e, como acontece em todas as pandemias, acaba-se por voltar à normalidade, isto é, conviver com o vírus, evitando, sempre que possível, o pior. E o pior está simbolizado na morte inexplicável de uma mulher que, desde o início e como uma ameaça, acompanha o destino das protagonistas. Essa aprendizagem do convívio com o desolador é o máximo a que se pode aspirar. Dito de outra maneira, há que saber ser infeliz e continuar viva.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.