Imaginemos que
estamos na montanha mágica, no sanatório de Davos, onde se desenrola o romance
de Thomas Mann, precisamente com o título de A Montanha Mágica, obra
começada a escrever em 1912 e terminada em 1924. Façamos ainda um esforço
imaginativo e pensemos o mundo como se fosse esse jovem engenheiro naval de
nome Hans Castorp, personagem principal do romance de Mann.
Olhemos para o
que acontece em torno do jovem Castorp. A educação do seu espírito é disputada,
não sem violência, pelo italiano Lodovico Settembrini e pelo judeu oriental –
talvez, imaginemos, um sefardita – Leo Naphta. O italiano é o representante do Iluminismo,
da democracia liberal e da liberdade individual. Naphta é um converso ao
catolicismo, mas a um catolicismo ultramontano, integrista. É um espírito
jesuítico exaltado que despreza as liberdades individuais e defende um
colectivismo meio comunista, meio eclesiástico.
O espantoso
neste exercício de imaginação é que descobrimos de imediato que o mundo, no
século XXI, caiu na montanha mágica, onde duas forças se opõem de modo cada vez
mais violento. Por um lado, o mundo ocidental, tomando a figura de Lodovico
Settembrini. Como este, o Ocidente é marcado pelo espírito liberal, pela defesa
da democracia representativa, pela economia de mercado, pela afirmação plena da
liberdade individual. O mundo, todavia, não é apenas o lugar dos amigos do
italiano imaginado por Mann.
Nele, há muitos
discípulos de Leo Naphta. O terrorismo islâmico, por exemplo, não desdenharia
de Naphta, as seitas neopentecostais também não, assim como os católicos ortodoxos
que desprezam o Papa Francisco, ou a extrema-direita europeia e americana.
Contudo, a manifestação mais clara do espírito de Leo Naphta encarna neste
momento em Putin e no Patriarca moscovita Cirilo. A invasão da Ucrânia não é
outra coisa senão uma luta contra a liberdade, a democracia liberal, o respeito
pelos indivíduos. Faz parte da actual guerra contra a herança do Iluminismo.
Voltámos ao tempo do conflito entre as Luzes e o
clericalismo farisaico e supersticioso, entre a ideia de império e o
cosmopolitismo. Só que este conflito, não se faz com palavras e exercícios de
retórica para cativar um espírito jovem e indeciso. Faz-se com a destruição
massiva de um país, com o massacre de inocentes, com tudo aquilo que a guerra
traz consigo. Voltámos para a montanha mágica e o que vemos não é agradável. Em
silêncio, sentado à sombra do velho Confúcio, outro personagem espera que
Settembrini e Naphta se aniquilem. O espírito de Hans Castorp, então, será seu,
assim como a montanha mágica. Sem disputa nem controvérsia.