sexta-feira, 29 de abril de 2022

A Garrafa Vazia 86

Francisco Farreras, Coudrage N.º 118, 1985

Recolho-me à terra calcinada,

as costas torcidas

pelo peso da penumbra.


A glória do fogo ateou

ondas de breu

no azedume das terras.

 

Fornalhas de morte habitam

nos sonhos de chumbo,

na fria fantasia das trevas.

 

Sou a sombra perdida

na incendiada

sonolência do entardecer.

 

Abril de 2022

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

A persistência da memória (12)

Hans Kammerer, Am Fenster, 1920s 
Abrir a janela e deixar o tempo deslizar diante dos olhos. Com ele, vêm pessoas, animais, restos de vida que se exibem como se a rua fosse um palco e a janela, um camarote. Por detrás desse rio de acontecimentos esconde-se um outro de águas subterrâneas. Aí, sem que ninguém se aperceba, desfila a memória do que se viveu, os grandes acontecimentos, as coisas sem importâncias, todas as dúvidas que se teve, todas as certeza que a vida rasurou.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

A maior conquista

Imagem do site da Time Out Lisboa

A dimensão do 25 de Abril de 1974 não é dada apenas por aquilo que permitiu construir, e o que permitiu construir não foi pouco, mas também por aquilo que substituiu. E o que substituiu não foi só um regime político de partido único, autoritário, com polícia política, prisões políticas, tribunais plenários, assassinatos de oposicionistas, censura (um aparelho ideológico fundamental do regime), purgas nas universidades, uma guerra colonial em três frentes para a qual não se vislumbrava qualquer solução. Substituiu também um país miserável, atrasado, fechado ao mundo, largamente analfabeto, quase desprovido de cuidados médicos generalizados e de segurança social. Um país política, social e moralmente miserável. 

As vicissitudes que depois nos trouxeram até aqui – um sítio incomparavelmente melhor, apesar de algumas almas suspirarem pelo ditador de Santa Comba – são o resultado das nossas opções feitas livremente. Não foram impostas. Foram escolhidas eleição a eleição, num sistema eleitoral altamente fiável e nunca posto em causa. No regime de Salazar e de Caetano, tínhamos a desculpa – real – de que o que acontecia era imposto através da violência política. O que nos acontece hoje é da nossa responsabilidade. Somos nós que escolhemos – ou nos abstemos livremente – os políticos e os programas que nos governam. A nós se deve o mérito e o demérito das opções. Essa foi a maior, mas também a mais pesada, conquista de 25 de Abril, a liberdade e a responsabilidade pelas nossas opções.

sábado, 23 de abril de 2022

Guerra na Ucrânia, Le Pen e nacionalismo


1. O primeiro derrotado da guerra na Ucrânia. Um dos postulados centrais do pensamento liberal é a crença de que a conexão comercial entre as nações as torna menos propensas à guerra. Foi por isso que parte substancial da União Europeia, com a Alemanha à cabeça, se tornou dependente da energia russa. Também o dinheiro dos oligarcas russos foi aceite com deferência pelos países europeus. Havia a convicção de que uma cada vez maior interconexão económica entre a União Europeia e a Rússia tornaria esta uma potência comercial pacífica. Essa crença mostrou-se falsa e perigosa. O que move os governos não é apenas o comércio, como os europeus estão a aprender desde 24 de Fevereiro. O postulado liberal da expansão comercial como factor de paz é o primeiro derrotado da guerra na Ucrânia.

2. A senhora Le Pen e o Estado de direito. Na última crónica escrevemos que quando os populistas chegam ao poder, o primeiro alvo é o Estado de direito. Como é que isso se aplicará em França, caso a senhora Le Pen ganhe as eleições de domingo? Segundo Jorge Almeida Fernandes, numa newsletter do Público, a “mola central do seu modelo institucional é o recurso maciço ao referendo como meio de contornar o parlamento. Quer generalizar o “referendo de iniciativa cidadã” sobre todos os assuntos para, entre outras coisas, anular leis aprovadas no parlamento”. O referendo é a estratégia central que os populismos utilizam para destruir o Estado de direito, desarticular a democracia representativa e instaurar paulatinamente uma governação autoritária. O referendo é o instituto que mais se presta a tomadas de decisão fundadas em emoções, onde a racionalidade das escolhas é substituída pelo fervor que os hooligans políticos ateiam na comunidade.

3. Nacionalismo. A invasão russa e a força da senhora Le Pen em França são sintomas de uma das doenças que contamina o mundo. O nacionalismo. Ela tinha-se manifestado na eleição de Donald Trump e no Brexit, mas existia já, de modo ostensivo, na Índia e na China, assim como na Rússia ou na Turquia. Há décadas que a doença se manifesta em muitos países da União Europeia. Depois da Guerra Fria, com a globalização, estabeleceu-se um novo confronto que opõe cosmopolitas, defensores de um mundo aberto, e nacionalistas, amigos das fronteiras e do etnocentrismo. Durante anos, falou-se no fim do Estado-Nação. A verdade é que ele parece mais forte, arrastando consigo um nacionalismo perigoso. Em caso de implosão da União Europeia, a própria Europa será um campo aberto para conflitos entre os seus múltiplos nacionalismos, o que a condenará, sem apelo, à mais pura irrelevância.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

A Garrafa Vazia 85

Lucio Muñoz, 7-86, 1986

Arrasto pelas ruas

o peso e a poeira

da frivolidade.

 

Bebo a seiva fria

no álcool turvo

do sangue.

 

Sou a sombra presa

na porosa pedra

do silêncio.


Abril de 2022

 

terça-feira, 19 de abril de 2022

A persistência da memória (11)

Alfred Stieglitz, The Terminal, 1893

Temos a estranha ilusão de que o tempo passa cada vez mais rápido, que existe uma aceleração do calendário. Essa fantasia nasce não porque o tempo se tenha acelerado, mas porque nós nos movemos muito mais depressa e as solicitações a que temos de responder são cada vez mais. É na conjugação da mobilidade crescente e do aumento das solicitações que nasce a sensação e o sentimento de que os dias, os meses e os anos são cada vez mais curtos. Essa sensação e esse sentimento são uma forma de protesto contra a realidade em que a vida se transformou e estão enraizados numa experiência arcaica da lentidão e num desejo inconsciente de imobilidade. 

domingo, 17 de abril de 2022

Nocturnos 78

Alfred Stieglitz, Reflections, Night–New York, 1896

As cidades nasceram para que a noite se iluminasse, tomada pelos reflexos fugidios de uma luz sem constância. Esse desassossego com a escuridão, a impossibilidade de permanecer diante da noite pura, é apenas o sinal de um desassossego maior, mais fundo, o de suportar a luz viva de cada dia.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Simulacros e simulações (33)

John Loengard, Henry Moore’s Sheep Piece,1983

Qual a ovelha real? Aquela que, de carne viva, se perde na neve fria, ou a que de bronze imutável manifesta a pura ideia de ovelha? Muitos não terão dúvidas sobre a realidade da ovelha de carne viva. Haverá, porém, quem veja na de bronze a eterna realidade da qual a ovelha viva é pura simulação. Não haverá, para esses, outra realidade que a dos simulacros, pois tudo o que é não passa de um simulacro de outra coisa, numa regressão sem fim. A realidade é a eterna simulação de si mesma.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Entre a liberdade e a fraternidade

Eugène Delacroix, La Liberté guidant le peuple, 1830

Se se somarem os votos em candidatos marcadamente iliberais ou antiliberais, na primeira volta das eleições franceses, o número a que se chega é espantoso: 61,1%. Este é o eleitorado potencial da senhora Le Pen. Resta saber, porém, como se comportará o eleitorado de esquerda não liberal (cerca de 25%). O que vai ser preponderante na altura de votar, se a memória do que foi a extrema-direita na Europa, se a raiva às instituições liberais. Depende desse eleitorado não apenas o resultado das eleições, mas o destino da Europa. Depende dele que a Liberdade continue a guiar o povo ou se este prefere uma fraternidade, na qual todos, por opção, são menores entregues aos cuidados de uma mãe severa

segunda-feira, 11 de abril de 2022

A Garrafa Vazia 84

Franz Josef Kline, Chief, 1950

Um coração de gravilha

pulsa no centro

do mundo.


Rosna em silêncio,

cão raivoso

perdido no serrim da cidade.


Se um punhal lhe toca

a garganta,

regurgita macilento o mal.

 

Abril de 2022

sábado, 9 de abril de 2022

Uma expectativa perigosa

 

Há neste momento, uma expectativa perigosa nas hostes dos que defendem a democracia liberal. Crê-se que o comportamento do Kremlin, com o seu nacionalismo autoritário e agressivo, seja uma vacina, no mundo democrático ocidental, contra os candidatos a Putins – de calças ou de saias – que por aí proliferam. Parece-me precipitado este pensamento. Caso assim fosse, a senhora Le Pen estaria em queda acentuada em França. Em Espanha, a direita democrática estar-se-ia a livrar do Vox. Só para dar dois exemplos perto de casa. Ora, isso está longe de acontecer. Apesar do apoio que a direita populista, por toda a Europa, tem tido de Putin, ela está a conseguir, aos olhos da opinião pública, demarcar-se do protector e inspirador.

Por que razão esta direita populista é perigosa? Porque põe em causa alguns pilares em que assenta uma vida comunitária decente. Que pilares são esses? O primeiro é o Estado de Direito, em que todos estão submetidos, de modo igual, à lei. Quando os populistas chegam ao poder, o primeiro alvo de ataque é o Estado de Direito. Um segundo pilar é a independência do poder judicial relativamente aos governos. Esta independência permite evitar que os que governam utilizem a justiça para perseguir os adversários. O terceiro pilar é uma comunicação social livre, que qualquer populismo, instalado na governação, trata de reprimir e abolir. O quarto pilar, vindo do século XVII, é a tolerância por aqueles que são diferentes. Também este é atacado pelo populismo nacionalista, ainda antes de chegar ao poder e como táctica para o conquistar.

Há um outro motivo pelo qual o populismo nacionalista é muito perigoso. Vive de rivalidades e de afirmação da supremacia de uma soberania nacional sobre outras, tal como se vê no presente caso da Ucrânia. Mesmo na Europa, isso é uma ameaça. Basta que a União Europeia desapareça. Por estranho que possa parecer, essa possibilidade continua no horizonte. Um triunfo do populismo nacionalista em França ou na Alemanha e estamos num grande sarilho. A partir desse momento, toda a Europa se tornará palco para as mais descabeladas aventuras nacionalistas. Não faltam por aí fronteiras em disputa. Não é por acaso que Putin – em certa altura com ajuda de Trump – tem tentado desarticulá-la. Os conflitos intra-europeus permitiriam à Rússia tornar toda a Europa um protectorado seu. Contrariamente ao que muitos pensam, não é seguro que a aventura de Putin represente um reforço das democracias liberais. Estas continuam frágeis e sobre ataque cerrado dos que desprezam os pilares em que elas assentam.

Post Scriptum. Este artigo foi escrito no já longínquo dia 27 de Março de 2022 e publicado na edição de ontem, 8 de Abril, do Jornal Torrejano. Neste curtíssimo intervalo, os motivos de inquietação cresceram. Não apenas com a vitória larguíssima de Viktor Orbán na Hungria, como com a possibilidade cada vez maior da senhora Le Pen ganhar as eleições francesas, com sondagens a dar-lhe vitória na segunda volta.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Beatitudes (51) Vale a pena

Jean Dieuzaide, Catalogne romane, San Jaime de Frontanya, 1957

Existem paisagens cujas raízes mergulham fundo na terra dura do tempo. Fulguram perante olhos atónitos e quem as vê sente, de súbito, a púrpura e o ouro da felicidade. Perante elas o olhar não se cansa e as preocupações da vida, o troar dos cascos dos quatro cavaleiros do apocalipse, tudo em que o mal toma figura é posto de lado, suspenso, para que o coração, por instantes, se dilate, e o no rosto se abra um enigmático sorriso. Depois, é-se atravessado por um pensamento: apesar de tudo, vale a pena. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Nocturnos 77

Herbert List, The Acropolis, 1937
Não foi a noite que desceu sobre a Acrópole. Foi ela que se retirou para junto dos deuses abandonados, essas divindades quase humanas, tomadas pela fulguração do efémero, pela cintilação do transitório. No seu lugar, restam simulacros feitos de pedra, vestígios de vida envoltos na escuridão do luto.

domingo, 3 de abril de 2022

A Garrafa Vazia 83

Elmer Bischoff, #88, 1985

Tiro do braço partido

o gesso carbonizado

da cólera.

Olho em silêncio

a pele esbranquiçada,

adivinhando

o osso recomposto,

a vida refeita,

a incúria a grassar

nos recantos do quintal.


Abril de 2022

 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Voltámos à Montanha Mágica


Imaginemos que estamos na montanha mágica, no sanatório de Davos, onde se desenrola o romance de Thomas Mann, precisamente com o título de A Montanha Mágica, obra começada a escrever em 1912 e terminada em 1924. Façamos ainda um esforço imaginativo e pensemos o mundo como se fosse esse jovem engenheiro naval de nome Hans Castorp, personagem principal do romance de Mann.

Olhemos para o que acontece em torno do jovem Castorp. A educação do seu espírito é disputada, não sem violência, pelo italiano Lodovico Settembrini e pelo judeu oriental – talvez, imaginemos, um sefardita – Leo Naphta. O italiano é o representante do Iluminismo, da democracia liberal e da liberdade individual. Naphta é um converso ao catolicismo, mas a um catolicismo ultramontano, integrista. É um espírito jesuítico exaltado que despreza as liberdades individuais e defende um colectivismo meio comunista, meio eclesiástico.

O espantoso neste exercício de imaginação é que descobrimos de imediato que o mundo, no século XXI, caiu na montanha mágica, onde duas forças se opõem de modo cada vez mais violento. Por um lado, o mundo ocidental, tomando a figura de Lodovico Settembrini. Como este, o Ocidente é marcado pelo espírito liberal, pela defesa da democracia representativa, pela economia de mercado, pela afirmação plena da liberdade individual. O mundo, todavia, não é apenas o lugar dos amigos do italiano imaginado por Mann. 

Nele, há muitos discípulos de Leo Naphta. O terrorismo islâmico, por exemplo, não desdenharia de Naphta, as seitas neopentecostais também não, assim como os católicos ortodoxos que desprezam o Papa Francisco, ou a extrema-direita europeia e americana. Contudo, a manifestação mais clara do espírito de Leo Naphta encarna neste momento em Putin e no Patriarca moscovita Cirilo. A invasão da Ucrânia não é outra coisa senão uma luta contra a liberdade, a democracia liberal, o respeito pelos indivíduos. Faz parte da actual guerra contra a herança do Iluminismo.

Voltámos ao tempo do conflito entre as Luzes e o clericalismo farisaico e supersticioso, entre a ideia de império e o cosmopolitismo. Só que este conflito, não se faz com palavras e exercícios de retórica para cativar um espírito jovem e indeciso. Faz-se com a destruição massiva de um país, com o massacre de inocentes, com tudo aquilo que a guerra traz consigo. Voltámos para a montanha mágica e o que vemos não é agradável. Em silêncio, sentado à sombra do velho Confúcio, outro personagem espera que Settembrini e Naphta se aniquilem. O espírito de Hans Castorp, então, será seu, assim como a montanha mágica. Sem disputa nem controvérsia.