segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Meditações Taoistas (18)

Autor chinês anónimo

Afirmam o espírito iluminado; estão apenas perturbados.
Dizem o espírito constante;  apenas estão inquietos.
São indiferentes como o mar; confusos como quem está agitado.
Lao Tse, Tao Te King, XX

Esse é o meu lugar, o sítio da perturbação, da inquietude, da confusa agitação. Uma sombra persistente acompanhou-me pela vida, dilacerou-me o espírito, abriu uma fenda no coração, que nada parece ser capaz de cerzir. A minha objectividade sempre foi enviesada e, salvo um ou outro equívoco, nunca no mundo encontrei algo que merecesse a piedade de uma crença. Quando enchem a boca de verdade, eu sorrio e, sorrateiro, saio para o ar livre. Quando era novo comprei barato algumas mercadorias. Pensava, ao vendê-las, que o mundo se tornaria melhor, um lugar mais decente. Mas tudo isso era fruto de confusa agitação. Não houve quem comprasse a tralha funesta e eu percebi, guiado por um instinto infalível, embora opaco, que não havia em mim alma de comerciante.

Tornei-me mais avisado, e quando me queriam vender outras e mais reluzentes fazendas, recusava com delicadeza e invocava a minha incapacidade genética para o comércio. Tudo era uma girândola de opiniões. As verdades, laboriosamente construídas, pereciam, sob o cutelo acerado de outras verdades, no efémero momento em que nasciam, para, daí a instantes, as assassinas entregarem, num outro patíbulo, o jogo e abandonarem a cena. Por todo o lado vi a expansão do comércio e raros foram os homens que encontrei que não tinham espírito de negociantes. Estes poucos viviam, como eu, na margem da inquietude. Líamos, nesses dias, todos os Livros do Desassossego que por aí havia e não sabíamos o que esperar.

Chegou, depois, o tempo em que, de forma cordata mas inflexível, a desordem se veio estabelecer. Não a desordem do tumulto, mas uma outra que se gera na impotência de organizar a inquietude, de a alimentar, de lhe dar novos rumos, ainda que contraditórios. As palavras começaram a faltar, pequenos esquecimentos, coisa de somenos. Foi o começo. Tudo se tornou mais lasso, os factos deixaram de se encadear, e o mundo foi ficando um amontoado de fragmentos, para os quais, cada dia que passa, se torna mais difícil encontrar ligação. As mesmas causas deixaram de produzir os mesmo efeitos e a face que vejo ao espelho pela manhã dificilmente a reconheço ao cair da noite. Quando encontro alguém que me conhece e me chama pelo nome, hesito sempre, preso na volúpia de uma tontura, sem saber se aquele é o nome que me deram ao nascer ou um inventado no instante. O coração inquieto deu lugar a uma mente perturbada.

6 comentários:

  1. Que texto este...!

    Só espero que tenha sido um sopro de inspiração (porque é um texto muito belo) mas que pouco tenha de autobiográfico. Seria excessivamente desolado, insuportável.

    Vou ficar à espera de textos seus mais animados, está bem?



    PS: Acabei de usar a fotografia do cipreste de que ontem lhe falei. Escrevi uma coisa que, para mim, seria impensável há tempos atrás mas, ao escrevê-la, fiquei contente por ter associado a fotografia que tinha gostado tanto de fazer (porque gostei muito de ali estar, naquele lugar, naquele momento) ao texto e à pessoa sobre quem estava a escrever.

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    1. Gosto muito da sua fotografia do cipreste, bem como de ouvir e ler Adriano Moreira. Esta gente que pulula por aí, ao pé de pessoas como o Adriano Moreira e outros não passa de lixo (assim mesmo, lixo).

      Quanto ao meu texto, ele, como tudo o que escrevo no blogue, é ficcional. Mesmo os textos de opinião são ficções. Não retratam o mundo, mas inventam-no a partir de um ponto de vista pessoal. Qual o estatuto de verdade deste tipo de escrita? Não passa de uma mera verosimilhança. Duvido que a verdade seja acessível à razão humana. Apenas contamos histórias, umas mais verosímeis que outras, umas mais bem contadas que outras.

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  2. Vou levar este texto comigo e meditar pro fundamenta no seu conteúdo .
    Abraço

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  3. Meditei e cheguei à conclusão de que muito do que comprei não passou de um embuste, mas, mesmo assim, sobrou muita idéia boa que não enjeito.

    Está-se muito bem aqui.
    Um abraço viking.

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    1. Sim, sempre sobram algumas ideias, nomeadamente de ordem moral.

      Boa estadia por terras de vikings civilizados.

      Abraço

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