Autor chinês anónimo
Afirmam o espírito iluminado; estão apenas
perturbados.
Dizem o espírito constante; apenas estão inquietos.
São indiferentes como o mar; confusos como
quem está agitado.
Lao Tse, Tao Te King, XX
Esse é o
meu lugar, o sítio da perturbação, da inquietude, da confusa agitação. Uma
sombra persistente acompanhou-me pela vida, dilacerou-me o espírito, abriu uma fenda no
coração, que nada parece ser capaz de cerzir. A minha objectividade sempre foi enviesada e, salvo um ou outro equívoco, nunca no mundo encontrei algo que merecesse a piedade de uma
crença. Quando enchem a boca de verdade, eu sorrio e, sorrateiro, saio para o
ar livre. Quando era novo comprei barato algumas mercadorias. Pensava, ao
vendê-las, que o mundo se tornaria melhor, um lugar mais decente. Mas tudo isso
era fruto de confusa agitação. Não houve quem comprasse a tralha funesta e eu percebi, guiado por um instinto infalível, embora opaco, que
não havia em mim alma de comerciante.
Tornei-me
mais avisado, e quando me queriam vender outras e mais reluzentes fazendas,
recusava com delicadeza e invocava a minha incapacidade genética para o
comércio. Tudo era uma girândola de opiniões. As verdades, laboriosamente
construídas, pereciam, sob o cutelo acerado de outras verdades, no efémero
momento em que nasciam, para, daí a instantes, as assassinas entregarem,
num outro patíbulo, o jogo e abandonarem a cena. Por todo o lado vi a expansão
do comércio e raros foram os homens que encontrei que não tinham espírito de
negociantes. Estes poucos viviam, como eu, na margem da inquietude. Líamos,
nesses dias, todos os Livros do
Desassossego que por aí havia e não sabíamos o que esperar.
Chegou,
depois, o tempo em que, de forma cordata mas inflexível, a desordem se veio
estabelecer. Não a desordem do tumulto, mas uma outra que se gera na impotência
de organizar a inquietude, de a alimentar, de lhe dar novos rumos, ainda que contraditórios.
As palavras começaram a faltar, pequenos esquecimentos, coisa de somenos. Foi
o começo. Tudo se tornou mais lasso, os factos deixaram de se encadear, e
o mundo foi ficando um amontoado de fragmentos, para os
quais, cada dia que passa, se torna mais difícil encontrar ligação. As mesmas
causas deixaram de produzir os mesmo efeitos e a face que vejo ao espelho pela
manhã dificilmente a reconheço ao cair da noite. Quando encontro alguém que me
conhece e me chama pelo nome, hesito sempre, preso na volúpia de uma tontura,
sem saber se aquele é o nome que me deram ao nascer ou um inventado no instante. O coração inquieto deu
lugar a uma mente perturbada.
Que texto este...!
ResponderEliminarSó espero que tenha sido um sopro de inspiração (porque é um texto muito belo) mas que pouco tenha de autobiográfico. Seria excessivamente desolado, insuportável.
Vou ficar à espera de textos seus mais animados, está bem?
PS: Acabei de usar a fotografia do cipreste de que ontem lhe falei. Escrevi uma coisa que, para mim, seria impensável há tempos atrás mas, ao escrevê-la, fiquei contente por ter associado a fotografia que tinha gostado tanto de fazer (porque gostei muito de ali estar, naquele lugar, naquele momento) ao texto e à pessoa sobre quem estava a escrever.
Gosto muito da sua fotografia do cipreste, bem como de ouvir e ler Adriano Moreira. Esta gente que pulula por aí, ao pé de pessoas como o Adriano Moreira e outros não passa de lixo (assim mesmo, lixo).
EliminarQuanto ao meu texto, ele, como tudo o que escrevo no blogue, é ficcional. Mesmo os textos de opinião são ficções. Não retratam o mundo, mas inventam-no a partir de um ponto de vista pessoal. Qual o estatuto de verdade deste tipo de escrita? Não passa de uma mera verosimilhança. Duvido que a verdade seja acessível à razão humana. Apenas contamos histórias, umas mais verosímeis que outras, umas mais bem contadas que outras.
Vou levar este texto comigo e meditar pro fundamenta no seu conteúdo .
ResponderEliminarAbraço
Será que vale uma meditação?
EliminarAbraço
Meditei e cheguei à conclusão de que muito do que comprei não passou de um embuste, mas, mesmo assim, sobrou muita idéia boa que não enjeito.
ResponderEliminarEstá-se muito bem aqui.
Um abraço viking.
Sim, sempre sobram algumas ideias, nomeadamente de ordem moral.
EliminarBoa estadia por terras de vikings civilizados.
Abraço