quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Deslegitimação moral

Remedios Varo - Banqueiros em acção (1962)

Nós, propondo aos leitores pacientes que fixem de novo os olhos em horrores conhecidos, acreditamos que teremos já um novo e honroso fruto se a indignação e a repulsa que não se podem deixar de sentir sempre, se virarem também, e principalmente, contra paixões que não se podem banir, como os falsos sistemas, nem abolir, como as más instituições, mas sim torná-los menos poderosas e menos funestas, ao reconhecê-las nos seus efeitos, e detestá-las. (Alessandro Manzoni, História da Coluna Infame, 1840)


Vivemos num tempo em que os maus sistemas de ideias, que não podemos banir, e as más instituições, que somos impotentes para abolir, são poderosos e não parece haver nem outros sistemas de ideias para contrapropor nem outras instituições para substituir as más. No mundo assim configurado, não é, todavia, uma fatalidade a aceitação de ideias e de instituições que são manifestamente injustas. O grande escritor romântico italiano, Alessandro Manzoni, neto do célebre Cesare Beccaria (autor de Dos delitos e das penas), traça um claro plano de acção: reconhecer os efeitos das ideias e instituições dominantes; detestá-las, isto é, mostrar a sua natureza imoral; para diminuir-lhes o poder e a maldade que produzem.

O que Manzoni nos ensina é a necessidade de deslegitimar moralmente as instituições e ideias que produzem a injustiça. Este é um dos campos fundamentais nos dias de hoje, onde a ideologia da supremacia dos mercados sobre o homem parece ser uma coisa natural e estar inscrita na ordem do mundo para toda a eternidade. Deslegitimar moralmente estas ideias e estas instituições significa tornar patente o mal que elas produzem, as injustiças que fabricam, a desumanidade que fomentam, para lucro e gáudio de uma minoria. Para que as actuais instituições possam ser enfraquecidas no seu poder e na sua capacidade de produzir o mal, é necessário que os homens as detestem pela imoralidade que representam.

4 comentários:

  1. Creio que a apregoada "superioridade moral" e o conceito de imoralidade sao demasiado subjectivos e nao raro se podem antagonizar.
    Muito sinceramente, nao sei se é por aqui que "lá" chegaremos...
    Pelo menos nos tempos mais próximos.

    Um abraco (sem cedilha)
    :)

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    1. Julgo que se a situação que se vive for sentida e vivida como contrária à lei moral, por um maioria significativa das pessoas, a realidade política acabará por não resistir. A actual situação está longe de ser percebida como imoral, e é isso que faz a sua força.

      Abraço

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  2. Nunca serão demais as vozes que desmontem os vícios de raciocínio. Geralmente a maldade vem a coberto de um propósito moral. E, nados e criados sob a égide da moral judaico-cristã, aí estamos todos dispostos a aceitar que pecámos e, logo, merecemos o justo correctivo.

    Foi oque aconteceu também desta vez. Que andávamos a gastar o que não tínhamos, que tínhamos andado a hipotecar o futuro de filhos e netos. Portanto, agora tinham que nos cortar o ordenado, suprimir regalias, abolir direitos. E aceitámos.

    (estou a falar no plural mas nunca engoli isto)

    Ora tudo isto é uma terrível falácia porque não foram aqueles a quem agora se ataca que gastaram demais: esses desvarios (salvo alguns excessos pontuais e até pouco relevantes no cômputo geral como estádios a mais ou coisas do género) quem os cometeu foram os banqueiros que ganharam e deram a ganhar a toda a espécie de especuladores. (Pagar taxas de rendimento de 150%, por exemplo, só para referir um caso de que recentemente se tem falado, traduz-se em buracos de muitos milhares de milhões de euros como se tem estado a ver)

    Por isso, quando nos vierem impingir austeridades brutais, o que deveria acontecer, a bem da lógica, seria que todos aqueles que beneficiaram de medidas de favor e adquiriram o que adquiriram por terem usufruído de rendimentos de usura e falta de vergonha, tivessem que devolver tudo o que obtiveram por essa via; e quem efectuou esse tipo de gestão ruinosa deveria ser preso e inibido de execrcer cargos de responsabilidade durante uns quantos anos.

    Ora o que está a acontecer, perante a passividade da maioria da população, é que esses mesmos são promovidos a cargos onde podem continuar a exercer a sua prática imoral. Vemo-los ministros, secretários de estado, banqueiros, consultores, assessores. E, no exercício das suas funções, têm a seu cargo agências de imagem e comunicação que passam para os media a receita do costume: que estão a salvar a pátria de excessos passados, que a austeridade continua a ser necessária. Uma vergonha que nunca será demais denunciar, detestar.

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    1. De facto, o combate moral tem um papel muito importante. A legitimação da austeridade recorre, como muito bem sublinha, a argumentos morais. É preciso desfaze-los.

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