Remedios Varo - Banqueiros em acção (1962)
Nós, propondo aos leitores pacientes que fixem de novo os olhos em horrores conhecidos, acreditamos que teremos já um novo e honroso fruto se a indignação e a repulsa que não se podem deixar de sentir sempre, se virarem também, e principalmente, contra paixões que não se podem banir, como os falsos sistemas, nem abolir, como as más instituições, mas sim torná-los menos poderosas e menos funestas, ao reconhecê-las nos seus efeitos, e detestá-las. (Alessandro Manzoni, História da Coluna Infame, 1840)
Estamos em tempo de citações. A de Manzoni serve para enquadrar e ficcionalizar sobre outra duas, as de Zygmunt Bauman: O que se passa é que o "estado social" foi criado para um mundo sólido como o que existia e é muito difícil torná-lo viável neste mundo líquido, no qual qualquer instituição que criemos tem seguramente os dias contados. Esta confirmação do óbito do "estado social" é, contudo, acompanhada pela denúncia, por Bauman, da actual situação: A austeridade que está a ser levada a efeito pelos governos pode resumir-se assim: pobreza para a maioria e riqueza para alguns pouco (banqueiros, os accionistas e os investidores). Ou o que é o mesmo: austeridade para Espanha, Portugal, Grécia e Itália, enquanto a Alemanha faz e desfaz o que lhe apetece.
Vivemos num tempo em que os maus sistemas de ideias, que não podemos banir, e as más instituições, que somos impotentes para abolir, são poderosos e não parece haver nem outros sistemas de ideias para contrapropor nem outras instituições para substituir as más. No mundo assim configurado, não é, todavia, uma fatalidade a aceitação de ideias e de instituições que são manifestamente injustas. O grande escritor romântico italiano, Alessandro Manzoni, neto do célebre Cesare Beccaria (autor de Dos delitos e das penas), traça um claro plano de acção: reconhecer os efeitos das ideias e instituições dominantes; detestá-las, isto é, mostrar a sua natureza imoral; para diminuir-lhes o poder e a maldade que produzem.
O que Manzoni nos ensina é a necessidade de deslegitimar moralmente as instituições e ideias que produzem a injustiça. Este é um dos campos fundamentais nos dias de hoje, onde a ideologia da supremacia dos mercados sobre o homem parece ser uma coisa natural e estar inscrita na ordem do mundo para toda a eternidade. Deslegitimar moralmente estas ideias e estas instituições significa tornar patente o mal que elas produzem, as injustiças que fabricam, a desumanidade que fomentam, para lucro e gáudio de uma minoria. Para que as actuais instituições possam ser enfraquecidas no seu poder e na sua capacidade de produzir o mal, é necessário que os homens as detestem pela imoralidade que representam.
Creio que a apregoada "superioridade moral" e o conceito de imoralidade sao demasiado subjectivos e nao raro se podem antagonizar.
ResponderEliminarMuito sinceramente, nao sei se é por aqui que "lá" chegaremos...
Pelo menos nos tempos mais próximos.
Um abraco (sem cedilha)
:)
Julgo que se a situação que se vive for sentida e vivida como contrária à lei moral, por um maioria significativa das pessoas, a realidade política acabará por não resistir. A actual situação está longe de ser percebida como imoral, e é isso que faz a sua força.
EliminarAbraço
Nunca serão demais as vozes que desmontem os vícios de raciocínio. Geralmente a maldade vem a coberto de um propósito moral. E, nados e criados sob a égide da moral judaico-cristã, aí estamos todos dispostos a aceitar que pecámos e, logo, merecemos o justo correctivo.
ResponderEliminarFoi oque aconteceu também desta vez. Que andávamos a gastar o que não tínhamos, que tínhamos andado a hipotecar o futuro de filhos e netos. Portanto, agora tinham que nos cortar o ordenado, suprimir regalias, abolir direitos. E aceitámos.
(estou a falar no plural mas nunca engoli isto)
Ora tudo isto é uma terrível falácia porque não foram aqueles a quem agora se ataca que gastaram demais: esses desvarios (salvo alguns excessos pontuais e até pouco relevantes no cômputo geral como estádios a mais ou coisas do género) quem os cometeu foram os banqueiros que ganharam e deram a ganhar a toda a espécie de especuladores. (Pagar taxas de rendimento de 150%, por exemplo, só para referir um caso de que recentemente se tem falado, traduz-se em buracos de muitos milhares de milhões de euros como se tem estado a ver)
Por isso, quando nos vierem impingir austeridades brutais, o que deveria acontecer, a bem da lógica, seria que todos aqueles que beneficiaram de medidas de favor e adquiriram o que adquiriram por terem usufruído de rendimentos de usura e falta de vergonha, tivessem que devolver tudo o que obtiveram por essa via; e quem efectuou esse tipo de gestão ruinosa deveria ser preso e inibido de execrcer cargos de responsabilidade durante uns quantos anos.
Ora o que está a acontecer, perante a passividade da maioria da população, é que esses mesmos são promovidos a cargos onde podem continuar a exercer a sua prática imoral. Vemo-los ministros, secretários de estado, banqueiros, consultores, assessores. E, no exercício das suas funções, têm a seu cargo agências de imagem e comunicação que passam para os media a receita do costume: que estão a salvar a pátria de excessos passados, que a austeridade continua a ser necessária. Uma vergonha que nunca será demais denunciar, detestar.
De facto, o combate moral tem um papel muito importante. A legitimação da austeridade recorre, como muito bem sublinha, a argumentos morais. É preciso desfaze-los.
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