William Turner - Barco negreiro (1840)
Uma moradia deliciosa, não é? As duas cabeças que ali vê são de escravos negros. Uma insígnia. A casa pertencia a um traficante de escravos. Ah! naquele tempo, não se escondia o jogo! Era-se frontal, dizia-se: «Bom, tenho uma boa situação, trafico escravos, vendo carne negra». Imagina alguém, hoje em dia, dar a conhecer que esse é o seu negócio? Que escândalo! Oiço já os meus confrades parisienses. Eles são irredutíveis relativamente a este problema, não hesitariam a dois ou três manifestos, talvez mesmo mais! Reflexão feita, eu acrescentaria a minha assinatura à deles. A escravatura, bah! não, não, nós somos contra. Que se seja constrangido a instalá-la em casa, ou nas fábricas, bem, isso pertence à ordem das coisas, mas gabar-se disso é o cúmulo. (Albert Camus, A Queda, 1956)
O romance de Albert Camus foi publicado em 1956, quase há sessenta anos. Podemos questionar o que, nesse lapso de tempo, mudou na consciência moral dos europeus. Será que a hipocrisia com que se ocultavam situações de escravatura - em casa, nos locais de trabalho - foi banida? Se meditarmos um pouco na situação em que o mundo do trabalho vive, podemos dizer que a hipocrisia sublinhada por Camus está paulatinamente a desaparecer. Os poderes - financeiro, económico e político - são cada vez menos hipócritas. Não há dia em que não digam, sempre com mais clareza, aquilo que antigamente ocultavam.
Sim, querem escravos. Não escravos como aqueles que fizeram a fortuna dos negreiros, mas escravos que a troco de salários ínfimos alienem o seu tempo e a sua capacidade de agir - como os outros se viram forçados a alienar a liberdade - para responderem, quando respondem, às suas necessidades básicas (por exemplo, ver aqui). Todas as discussões em torno do custo da mão-de-obra e da necessidade de a embaratecer só tratam, às claras e sob os olhos de todos nós, da gestão da escravatura contemporânea. Em 1956, essa escravatura era praticada, mas admiti-lo seria um escândalo para a consciência pública. Hoje, faz-se e sem qualquer escândalo. Eis os últimos progressos da consciência moral da humanidade ocidental.
(...)
ResponderEliminarCom gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam
Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes
Ah!
eles cantam...
'Agostinho Neto'
O Tempo da escravatura é outro. É preciso deixar de (só) cantar...
Abraço
Diria: o tempo é outro, mas a escravatura não deixa de ser escravatura.
EliminarAbraço