segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

E se a democracia representativa acabar?

Juan Barjola, Multitud, 1990

A democracia representativa foi uma invenção genial. Com ela tinha-se o melhor de dois mundos. A possibilidade de todos participarem no processo político e uma barreira sólida, embora discreta, aos desmandos e delírios da massa. A democracia representativa foi inventada contra as pretensões irrazoáveis da massa. Não é perfeita, o seu formalismo pode ser, e tem sido, capturado por interesses particulares, mas nunca prometeu um paraíso na terra. É um regime cordato que tem permitido uma vida civilizada entre homens com ideias e paixões distintas. Agora que a revolução digital está a dinamitar a democracia representativa e a abrir caminho para uma nova forma de democracia fundada no gosto e arbítrio da massa, no seu rancor ao outro, começa a justificar-se toda a desconfiança com que a democracia foi olhada desde Platão. O gosto da massa, os seus instintos mais rudes, a sua incompreensão por aquilo que é mais elevado, o ódio e ressentimento ao que não compreende são o caminho que, não sendo atalhado, destruirá o que ainda há de nobre na democracia representativa, podendo abrir a via para um totalitarismo que, devido ao desenvolvimento tecnológico, fará dos totalitarismos do século XX uma brincadeira de crianças.

domingo, 29 de dezembro de 2019

A Origem da Luz 4

Zao Wou-Ki, 10-2-76

O tempo em que voltavas com os teus mostruários,
pequenos faróis vermelhos, ébrios de tanto caminhar.
Sonolentas bicicletas iam e vinham, cerziam a aldeia
de lés-a-lés, como se um deus infrutífero descesse e
poisasse insensato na calma placidez dos dias.

Aqui, destas janelas, avistei o insuspeitado mundo
e nada era puro ou mácula alguma habitava
o regaço das mulheres. As coisas eram o enorme
incêndio de serem apenas coisas, pedaços terríveis
na sujeição ao tempo, o feroz tribunal sem lei.

Eras a presença tutelar, o meu respeito,
caminho de argila e calcário a abrir-me ao mundo.
Trazias-me as cores e um dever ser, o crime jamais
alguém o pagará. Pedra a pedra o universo cresceu e
sobre mim desabou. Nele um deus infrutífero nascia.

(1981)

sábado, 28 de dezembro de 2019

Dos milagres em educação

Pablo Picasso, Head of the Medical Student, 1907

Fiquei espantado, mas há pouco descobri que nos colégios católicos não se acredita em milagres. Estive a ler a ficha de avaliação de uma aluna dum desses colégios e, para espanto meu, a única coisa em que acreditam é que ela deve trabalhar mais, ser mais organizada, dedicar-se mais. Portanto, se os alunos nesses colégios quiserem ter boas avaliações a única coisa a fazer é esforçarem-se e não esperar pela intervenção graciosa do Espírito Santo. Uma ficha daquelas no ensino público gerava uma revolta parental. Nos colégios privados – bons, pois também há dos outros – os pais pagam e não protestam, não culpam os professores por aquilo que os filhos não fazem. Num colégio privado diz-se aquilo que o aluno tem de fazer, na escola pública – onde, apesar de ser laica, se acredita muito em milagres – aquilo que se indica é o que os professores têm de fazer para que os alunos cheguem ao sucesso, mesmo que estes não queiram fazer absolutamente nada. Quanto a milagres estamos conversados. Os católicos, quando se trata de educação, não acreditam neles, mas os republicanos laicos e socialistas vivem num mundo povoado de milagres.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Dizer não

Johan Hagemeyer, Wires, 1928
Também a orientação dos sonhos que guiam a humanidade é tocada pela volubilidade, ainda que isso não seja sempre aparente. Durante muito tempo sonhou-se em ligar toda a humanidade. Estabelecer contacto era um imperativo moral. A partir de certa altura estenderam-se por toda a Terra milhões de quilómetros de cabos com a esperança que, cingidos os homens pela força do cobre, estes comunicassem e, na hipótese mais favorável, se entendessem. A imaginação, todavia, nunca descansa e, agora que toda a gente parece estar enredada numa teia global, sonha em desligar, cortar a comunicação, serrar os cabos vistos como amarras que prendem as pessoas, numa comunhão que parece estar a tornar-se insuportável. O trabalho da imaginação não começa por ser um reproduzir da realidade nem, tão pouco, criar um esquema que produzirá o que é novo. O primeiro balbucio é quase sempre um dizer não.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Nocturnos 2

Izis, Trafalgar Square, London, UK, 1950

Quantas vezes a noite começa com uma promessa e acaba com uma desilusão. Sábio é aquele que nunca deixa que a ilusão se desfaça e que a realidade invada a noite com os holofotes do meio-dia, que a tudo iluminam e a tudo destroem.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Iluminações de Natal


De todas as coisas que chocam com o espírito de Natal a menor delas não será as iluminações natalícias. Começaram nos grandes centros urbanos e espalharam-se paulatinamente por todo o lado. Com a sua democratização, grandes e pequenas cidades transformaram o Natal numa espécie de Carnaval, muitas vezes de péssimo gosto. As iluminações fazem parte de uma estratégia – gerada espontaneamente ou pela mão invisível do mercado – cujo resultado é rasurar tudo aquilo que é central no Natal dos cristãos, o mistério de Deus que se faz homem num estábulo de Belém.

A degradação do Natal tem uma origem curiosa. A racionalização do mistério da encarnação, a leitura literal da história narrada no evangelho de Lucas, a transformação do cristianismo numa moral social, agora em conflito com outras morais sociais, todas estas coisas fizeram do Natal não um acontecimento a ser vivido por cada um mas uma data comemorativa, uma espécie de feriado cívico de âmbito civilizacional. Comemora-se o Natal no mundo cristão como se comemora a tomada da Bastilha em França, o 4 de Julho nos EUA ou o 25 de Abril em Portugal. Uma grande festa, um momento feérico e uma orgia de consumo, tudo às avessas da história narrada pelo evangelista.

A modernidade, o espírito das Luzes, o triunfo da ciência e da economia de mercado são factores que contribuíram para o desencantamento do mundo, para a perda de sentido tanto dos mitos como dos mistérios religiosos. O cristianismo era, na sua origem, uma religião mistérica, um programa existencial para que cada homem se transformasse em Cristo. Tudo isto se tornou, há muito, radicalmente estranho a todos nós ocidentais, sejamos ateus, agnósticos ou crentes. Mesmo numa época como a nossa em que a irracionalidade das crenças e dos comportamentos cresce rapidamente, em que as próprias Luzes parecem querer apagar-se, o mistério da encarnação perdeu o sentido, tornando-se o Natal num exercício fastidioso de compras, encontros e desencontros.

As iluminações natalícias são o sintoma de que o Natal está morto no mundo ocidental. A luz de Belém foi substituída pelo néon que anima o espírito duma época que fez da compra e da venda a razão suprema e o sentido último da vida dos homens. Ao perder-se a substância do acontecimento, ao ficar-nos vedada a capacidade de compreensão dos símbolos que se manifestam no Advento, resta-nos fingir uma grande alegria embrulhada em presentes, almoços e jantares e nessas iluminações que deixam em nós um desconsolo irreparável. Um bom Natal.

[A minha crónica natalícia em A Barca]

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Serviços públicos, superavit, sistemas eleitorais e vergonha


DEGRADAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS. Existe a ideia de que a degradação dos serviços públicos se resolveria com uma melhor gestão. Qualquer partido a defende desde que esteja na oposição. O problema, porém, é outro, a falta de dinheiro. As políticas de restrição orçamental não terminaram com a saída da troika e o fim do governo de Passos Coelho. Continuaram na legislatura seguinte, baseada numa coligação parlamentar das esquerdas, e continuam agora. A razão é muito simples. A dívida é enorme, os nossos parceiros europeus nem querem ouvir falar na sua reestruturação e o país continua a precisar de ter juros muito baixos. O resto faz parte do combate partidário.

SUPERAVIT ORÇAMENTAL. Consta que o governo, no orçamento para o próximo ano, se propõe alcançar um saldo orçamental positivo. A acontecer será a primeira vez nos últimos 50 anos, o que inclui governos da própria ditadura com saldo negativo. Há quem veja o acontecimento como negativo e ache que o dinheiro deveria ser gasto, continuando o país a endividar-se. No entanto, tem que chegar um momento em que a comunidade – e o Estado é a comunidade organizada para tomar decisões sobre a vida comum – tem de olhar para a realidade e viver com o que tem. Aquilo que foi iniciado no governo PSD-CDS e continuado na anterior legislatura deve prosseguir. As contas em ordem tornam o país mais forte e protegem as pessoas das visitas indesejáveis das troikas.

UM SISTEMA ELEITORAL A EVITAR. As eleições em Inglaterra confirmaram a legitimidade de Boris Johnson e dos resultados do referendo que conduz à saída da Inglaterra do projecto Europeu. O curioso é que esta vitória se dá quando o número de votantes dos partidos pró-brexit é menor do que o número de votantes nos partidos pró-UE. Como se explica isto? Pelo sistema eleitoral inglês, o qual distorce acentuadamente a representação proporcional. O Partido Conservador obteve 43% dos votos mas alcançou 56% dos deputados.

O PROBLEMA DA VERGONHA. Portugal não tem uma comunidade muçulmana significativa nem existe um qualquer problema que ponha em causa a integridade nacional como em Espanha. Estas são as grandes razões que têm feito crescer a direita populista na Europa. André Ventura, retirando alguma animosidade com a comunidade cigana e um coro de ressentidos, precisa de inventar um eleitorado. A estratégia é a indignação e a vitimização. Ferro Rodrigues caiu na esparrela. Os democratas – em particular os de esquerda – devem ponderar bem o modo como enfrentam quem não perderá qualquer minudência para fazer um drama de faca e alguidar. É um problema de luta pelo mercado eleitoral.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A Origem da Luz 3

Arshile Gorky, Good hope II (Pastoral), 1945

Observar a macieira, espectro no centro
da terra, era de todos o primeiro sonho.
Parados no soalho, olhavam especados.
Tomo da memória a coloração dos sons,
o timbre dos odores, a caducidade dos gestos.

Dos vidros, restava a memória da guerra,
a recordação profana do corpo dilacerado.
Os deuses desciam envoltos em seus halos,
em breves haustos abençoavam pedras e heras
que suspensas em ocultas mãos amavam.

Galáxia ou um império de frutos a nascer,
os dedos aprenderam a luz da noite. A maçã
reinava nas brancas paredes dos quartos,
onde silhuetas jogavam os primeiros dados.
Um pequeno raio fulgia e afogava os astros.

(1981)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Nocturnos 1

Bill Brandt, St. Paul’s Cathedral in the Moonlight, 1939
A noite cerra-se sobre a catedral, onde um Cristo permanece na sua eterna encruzilhada entre a vida e a morte, entre o céu e a terra. O luar alivia-lhe, por instantes, a dor, enquanto os homens dormem estendidos na escuridão da noite. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Alma Pátria 58: Fernanda Peres, Fado das Lágrimas



Uma viagem até 1958, ao Fado das Lágrimas escrito por Alberto Janes e cantado por Fernanda Peres (1931-2016). Gravado num 45 rpm, forma conjunto com Fado Corrido, Já Não Te Quero e Nem às Paredes Confesso. O pano de fundo ideológico do tema é recorrente do fado daquela época. Desgosto, almas a sangrar, prantos e segredos, choros e temporais e, como não podia deixar de ser, a sina. Este fatalismo da afectividade torna-se, se se abandona os lugares comuns, difícil de interpretar. Seria ele uma emanação ideológica da situação política que se vivia ou seria antes, uma espécie de protesto inconsciente que se expressa na ideia de que na ausência da liberdade tudo está submetido à dura necessidade, ao puro fatalismo? Apesar de Fernanda Peres ser hoje em dia desconhecida fora dos círculos do fado, a alma da pátria chorava muito bem bem na sua voz de fadista.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Beatitudes (18) Paraíso

Alfred Cheney Johnston, Helen Lee Worthing, Ziegfeld girl, 1920
Todo o paraíso se abre como uma promessa e, enquanto promessa permanecer, não deixará de ser esse jardim eterno que se anuncia aos olhos ou floresce no coração de quem ao acaso por ele passa.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Ensaio sobre a luz (75)

Fernando Lemos, Light and Stubbornness, 1949
Toda a luz começa como um ensaio, a tímida experiência de enfrentar as trevas, inundando-as lentamente, criando na noite pequenas fracturas, abrindo aqui e ali frestas, passagens que se dilatam para que a gigantesca onda luminosa se sobreponha e transforme em luz o que era teimosa escuridão.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A Origem da Luz 2

Elmer Bischoff, #88, 1985

Falar de Maio, o mês onde o sol secou
as primeiras lágrimas, as definitivas lições.
Na casa havia um hálito de sombra, o Estio
inundava de rumores as rosas do jardim,
o retrato roubado aos dias de Dezembro.

Qual a matéria dos actos? Em desespero,
cavalgam os astros, voam ao sol e ao luar.
Cantam a sombria sapiência das horas.
Cantam as tristes traições no livor da língua.
Cantam na terra o murmúrio do mar.

Raios de luz erguem das paredes a poeira
e a casa treme na placidez dos elementos,
na fúria de mãos absortas e criminosas.
Aspidistras tombam nos corredores e
em meus olhos há ruas de cal e ambrósia.
                       
(1981)

sábado, 7 de dezembro de 2019

A questão ambiental


A generalidade dos cidadãos, onde se incluem as elites políticas, não tem qualquer capacidade para julgar se as alterações climáticas em curso são de origem humana ou se são apenas efeitos de uma alteração do clima que ocorre independentemente das acções humanas. A questão é fundamental. Se as alterações climáticas não são de origem humana, poder-se-á argumentar, como o fazem certos sectores, que toda a preocupação é inútil. Se, pelo contrário, as alterações climáticas tiverem origem na acção do homem a partir da Revolução Industrial, há a esperança de, alterando o comportamento humano, impedir um desfecho trágico para a existência do homem na Terra.

Um argumento a favor da crença de que as alterações climáticas actuais são de origem humana é o facto de grande parte dos cientistas que trabalham sobre o clima terem essa perspectiva. Existem também cientistas com opinião contrária, mas são largamente minoritários. Um segundo argumento está ligado às motivações dos negacionistas que, devido a interesses particulares, tendem a negar a realidade. Isso passou-se noutras alturas e o caso mais conhecido é o da indústria do tabaco que, quando a ciência começou a estabelecer a relação entre o fumo e o cancro de pulmão, lançou uma estratégia para criar uma dúvida persistente na opinião pública. A negação relativamente ao clima seria também uma criação dos chamados mercadores da dúvida, os quais operam para desacreditar o trabalho científico aos olhos do público, permitindo às indústrias poluentes continuarem a não ser incomodadas.

Não são precisos, porém, nenhum destes dois argumentos para defender uma radical alteração das políticas e dos comportamentos relativamente ao clima. Podemos admitir que existe grande incerteza sobre se as actuais alterações do clima se devem ao homem ou se decorrem da própria natureza. Essa incerteza basta para que os seres humanos e os dirigentes políticos ajam com prudência, o que significa alterar o nosso modo de vida e ter políticas adequadas a essa alteração. Essa prudência tem uma dupla vantagem. Caso as alterações climáticas sejam de origem humana, a prudência poderá evitar a tragédia que se anuncia. Se as alterações climáticas forem de origem natural, a prudência ajudará a minimizar os efeitos em vez de os agravar. Do ponto de vista político e ético, é indiferente se possuímos uma teoria fortemente corroborada da origem humana das alterações do clima (como parece ser o caso) ou se há uma grande incerteza científica sobre a origem dessas alterações (como pretendem os negacionistas). Os imperativos práticos são os mesmos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O PISA e as duas culturas


O que nos mostram os resultados do PISA (um programa internacional de avaliação de alunos; ver aqui)? Mais importante do que discutir sobre o desempenho dos alunos portugueses (e do sistema educativo português) é perceber a grande fractura cultural que o estudo torna patente. Esta fractura tem já uma forte componente política e perspectiva um futuro sombrio para o mundo ocidental. Como se pode verificar (ver aqui e aqui), os primeiros lugares são todos eles ocupados por regiões chinesas e Singapura. Também o Japão, com um desempenho menos brilhante na área da leitura, está no topo nas áreas das ciências e da matemática.

O problema reside na diferença de culturas entre estes países e regiões e os outros. Os resultados dos estudantes asiáticos devem-se a uma cultura de disciplina, esforço, rigor, propensão para enfrentar obstáculos e ultrapassá-los. Esta cultura é muito diferente daquela que reina em Portugal e muitos países de cultura ocidental. As virtudes da disciplina, do esforço e do rigor estão desvalorizadas perante uma cultura da gratificação imediata, da desistência perante obstáculos, da ausência de rigor. Argumentar-se-á que não são todos os alunos assim. É verdade, mas também é verdade que muitos são e que a cultura de exigência é mal vista por muitos alunos, muitos pais, parte significativa das sociedades ocidentais e até, de forma mais ou menos sub-reptícia, pela ideologia educativa que se apossou de muitos sistemas educativos ocidentais. Perante estas realidades, não é de espantar o contínuo crescimento da influência política dos povos asiáticos e o decréscimo persistente do peso dos europeus. É na escola que isso começa.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Defender a democracia liberal


Durante algum tempo pensou-se que o mundo caminhava inexoravelmente para a democratização dos regimes políticos. A terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal em 1974 e que se prolongou não apenas na Europa do Sul, mas na do Leste, com o fim dos regimes comunistas, e na América Latina, parecia indicar estar-se num processo irreversível. Olhar hoje em dia para essas expectativas é perceber não apenas quanto se estava errado mas também a própria fragilidade das democracias liberais, isto é, daquelas que aliam à democracia representativa um Estado de direito, com separação de poderes.

O ataque aos regimes demo-liberais ocidentais, vindo de dentro deles próprios e que em Portugal só agora se começa a esboçar, é de tal maneira grande que, nos dias que correm, o tradicional e estruturante conflito entre direita e esquerda, apesar de continuar importante, cede diante da necessidade de concentrar esforços na preservação do bem maior que é o regime democrático, a possibilidade de haver alternância no poder, de os que o conquistam não persigam os seus adversários, enfim que a política não se torne presa dos conceitos de amigo e inimigo, isto é, do prenúncio ou do Estado autoritário ou da guerra civil.

A existência de uma democracia liberal não é uma evidência e não é um destino que esteja fatalmente no horizonte de qualquer Estado. Se olharmos para a história política da humanidade, percebemos que a democracia é quase um acontecimento excepcional, uma espécie de milagre laico da razão humana. As democracias representativas exigem certas condições sociais, políticas e culturais e, para além disso, o esforço dos cidadãos em limitar a sua frustração quando as suas ideias perdem e o seu júbilo quando ganham. Uma vitória em democracia não é nem o esmagamento dos adversários nem uma carta de alforria aos que ganham para fazerem o que querem. Uma derrota não é uma condenação. A democracia liberal nasce do esforço para cultivar limites ao poder.

O problema é que nós seres humanos possuímos, ao lado de uma propensão para a vida civilizada, uma não menor inclinação para a barbárie. Por vezes, como acontece nestes dias um pouco por todo o mundo ocidental, não suportamos as regras civilizadas e, perante o ressentimento e a frustração das nossas expectativas, o bárbaro que há em nós começa a abrir a boca e a agir em conformidade. Esta situação denota que o contrato social que sustentou as democracias se rompeu. É a reconstrução desse contrato que deverá unir todos aqueles que, à direita e à esquerda, crêem na superioridade civilizacional dos regimes demo-liberais.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Alentejo, Alentejo

JCM, Alvito, 2019
Chega-se ao Alentejo e a primeira sensação, a mais superficial, é de imobilidade. Enquanto todo o país foi tomado pela azáfama da mobilização, em que cidades e vilas foram descaracterizadas e, muitas vezes, mortas pelo progresso empreendedor dos empreiteiros e de presidentes da câmara ansiosos de ganharem uma estátua no centro da paróquia, o Alentejo permaneceu estranho à azáfama, tratando de manter a cara lavada. A segunda sensação é a da reconciliação que a pessoa sente ao caminhar naquelas ruas brancas, onde são raríssimos os atentados ao bom gosto. Por fim, começa-se a desconfiar que naquelas cidades e vilas, onde o tempo se recusa à velocidade, a vida é mais autêntica e tudo aquilo tem uma dignidade que não se suspeita já em parte alguma do país. O Alentejo é um país à parte.