A cançoneta data de 1969 e Portugal era, na altura, um império
colonial, talvez não tanto império nem lá muito colonial. Por cá dizia-se que
tínhamos províncias ultramarinas. Aliás, na época, e talvez ainda hoje, dizer colónias e dizer províncias ultramarinas pressupunha uma clara divisão política. O Duo
Ouro Negro era o resultado disso. Angolanos de nascimento, Milo e Raul Indipwo
abrilhantavam a cena musical da metrópole, como então também se dizia. Maria
Rita e as festas do S. João, no Porto, uma centelha da alma pátria, em
tonalidade colonial.
segunda-feira, 31 de outubro de 2016
domingo, 30 de outubro de 2016
Livro do Êxodo - 31. Fogos incandescentes
Thomas Cole - Expulsión. Luna y luz de fuego (1828)
Ali, um
espectáculo de fogos incandescentes, sublime, sublime, regurgitam os mirones, ruas
apinhadas, praças repletas e o povo, assim se chama à cercadura de pessoas, extasiado,
abre olhos e bocas, se tudo se ilumina e a noite perde, por breves instantes, a
negrura, a natureza a fizera. São as festas, vejo, o aguilhão mantém homens e
mulheres no ritmo que lhes deram e os calam e os afugentam e os fazem esquecer
a flor do cipreste, as águas insalubres, do céu agora correm. E assim viajam de
esquecimento em esquecimento, até que lhes doa o peito e as pernas, e uma cama
os acolha, tão derruídos, sem face que se mostre, sem palavra que se oiça, sem
dedo que aponte um caminho.
Os barcos
apodreceram e os barqueiros não sabem de remos nem velas. Escutam no fio da
noite o rumor dos passos, a água desliza para o mar, as mãos caídas, a língua
seca. Já não respiram, estão ali tão lentos à espera que a morte os leve, e
tudo passa diante deles, mas os olhos só vêem mares salgados, poentes
rancorosos, águas de xisto e areia, algas, cardumes maiores que o mundo. Presos
no horizonte, estão os olhos dos conquistadores, vítreos, lavrados em pedra,
desfeitos pelo vento. Barqueiros de barcos sem vela, navegadores do seco
oceano, gente esquecida, ébria, sem destino, gente perdida de festa em festa,
de olhos incandescentes, presos ao céu, ao artifício de fogo que se ergue e
logo cai, gente que sonha águas e ondas, um mar aberto para fugir da servidão
da terra, da corveia sem fim a pagar.
As mãos, mãos
ainda têm, pegam em artifício de madeira, para obrar em toda a obra, rasgar a
pele do animal, traçar rotas atlânticas, ou uma rua de casas caiadas e
laranjeiras bravas. Que tudo se afaste, pensam e vêem desfilar os elementos do
mundo. Ali vão eles alinhados, passo
certo, pés a estrondear no alcatrão da noite, essa que não vem. Se os fogos se
ateiam, os mirones dizem sublime, sublime, depois calam-se, baixam os olhos, e
caminham para casa. Pensam no mar, em caravelas, nas prostitutas dos grandes portos
à sua espera, pensam na noite, e o cheiro da luz a entrar-lhes pelas narinas, a
abrir o caminho para o cérebro, para a duna feroz do esquecimento. E ali vão,
desdentados e grisalhos, o lençol branco os espera, depois a terra fria e um
ramo de flores, se as houver, marca o princípio do aluimento. Apinham-se as
ruas e um espectáculo de fogos incandescentes amotina a madrugada, desenha
constelações no céu de veludo, as praças há muito abandonadas.
sábado, 29 de outubro de 2016
Doutores, engenheiros e arquitectos
Francisco de Zurbarán - Un doctor en leys (1658-60)
Há duas doenças sociais em Portugal que estão amplamente associadas. A
primeira é a psicose obsessiva com os títulos académicos. Tanto quando não se possui
esse título - como se tem continuado a ver nos últimos dias (aqui
e aqui) -, tanto quando se possui, e o titular acha de bom tom fazer anteceder o nome pelo
título ou, na maioria dos casos, pelo suposto título (a confusão entre
licenciado e doutor é corrente). A esta obsessão nacional com os títulos há que
juntar a histeria generalizada das praxes académicas, dos rituais e
indumentária que lhes estão associados. Estes eventos, tal como foram
reintroduzidos nos anos 80 do século passado, significam apenas uma coisa:
olhem bem para nós que somos universitários, futuros doutores. Digamos que a
praxe académica é a primeira fase da doença, marcada pela ostentação histérica,
que acaba na psicose obsessiva, onde o paciente já não se apercebe do seu
estado e acha normal trocar o nome de registo civil pelo de doutor, engenheiro ou arquitecto.
Como explicar esta pandemia? Ela é um belo retrato do país que somos.
E aquilo que somos não é de agora. É o retrato da nosso miséria social, de uma
sociedade marcada pela profunda discriminação e pela inveja surda que essa
discriminação foi alimentando. Uma consulta aos arquivos paroquiais do século
XIX, já depois do início do liberalismo, dá-nos uma imagem nítida dos gérmenes infecciosos
que suscitam a inveja social e que desaguaram nesta pandemia. Olhar para o
tratamento recebido pelas pessoas nos registos de baptismo (não o baptizado,
mas os seus familiares), casamento e óbito permite perceber muita coisa. A
generalidade das pessoas é indicada pelo nome próprio, pois não possui outro. As mulheres muito raramente
têm apelido e o mesmo se passa com um número considerável de homens. No entanto, há alguns
registos, muito poucos, em que as mulheres são tratadas por Dona, possuem apelidos, e os homens
por Ilustre (para o caso de ser destituído de título académico mas possuir bens
que sustentassem um grande peso social), Doutor ou Bacharel. A burocracia
eclesiástica apenas reproduzia uma situação social de grande indiferenciação da
generalidade da população e que tinha como contrapartida a existência de um
pequeno grupo diferenciado assente ou na posse da terra ou no título universitário.
Para a generalidade das famílias sem acesso à propriedade da terra, e propriedade com uma certa dimensão, ter
um filho a estudar era uma impossibilidade de facto. Numa sociedade imóvel, com
uma iniciativa individual quase nula, a imagem do doutor e do bacharel ganhou uma
aura de distinção que substituiu os títulos de nobreza no imaginário popular e tornou-se a fonte dinamizadora da inveja social. A
primeira metade do século XX poucas alterações introduziu no panorama social.
Com a lenta escolarização da segunda metade do século passado e a emergência da
democracia política, o modelo de distinção social disponível – agora, que a
posse da terra deixara de ser particularmente atraente – era aquele que
vigorava no século XIX, o título académico. Não há rapaz ou rapariga – com a
excepção das elites sociais ou de famílias muito politizadas à esquerda – que não
ache uma distinção o traje e as supostas tradições académicas plasmadas na
praxe. Não há licenciado seja no que for que chegue a uma câmara ou uma qualquer
repartição pública ou mesmo empresa privada que não queira ser tratado por
doutor, engenheiro ou arquitecto.
O drama é que tudo isto tinha valor no século
XIX e não no XXI. O drama é que os nossos universitários, apesar dos graus
académicos, possuem uma cultura tão paroquial quanto os seus tetravós que
tinham como destino trabalhar nos campos. Pior, movem-se num ambiente cultural,
o que se manifesta nas praxes, ao nível do mais rasteiro que existe. Esta
cultura do doutor, que se preparou em inumeráveis bebedeiras e actividades da
praxe académica, está longe, muito longe, daquilo que é necessário num mundo complexo,
perigoso e exigente como aquele em que vivemos. Ser tratado por doutor, ou mesmo
sê-lo, não torna ninguém mais criativo, mais dinâmico e mais capaz de rasgar
novos caminhos. Vai demorar ainda muito tempo para os portugueses perceberem que esta ânsia de ostentar trajes e títulos académicos não passa de um sintoma
da nossa miséria, tão claro e tão óbvio como o era, no século XIX, o facto da
generalidade das pessoas não possuir apelido e ter como destino o trabalho braçal.
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
Rumores de Maio 21. Poemas do 1.º de Maio (II)
21. Poemas do 1.º de Maio (II)
Agora a vida é um incêndio,
um anjo esfiapado
a desfilar pela solidão
das vielas.
O mensageiro de pedra ergue
no murmúrio da
multidão
a bandeira da
aurora.
Caminha na volúpia
das vozes e
levanta o uivo do
sol
na sombra extasiada
do lago.
(Rumores de Maio, 1977)
quinta-feira, 27 de outubro de 2016
Descrições fenomenológicas 7. Uma carta
Arden Quin - Forme Noire II (1942)
Os olhos negros, toldados por sobrancelhas espessas e não tratadas, têm,
à superfície, uma vida mortiça, embora, se observados com atenção, ainda
guardem, bem ao fundo, um brilho, talvez o resto de uma esperança. O rosto
ovalado, quase inexpressivo, é cortado por um nariz não excessivamente grande,
que se abre em duas narinas regulares e bem marcadas. A boca,
surpreendentemente, contrasta com a expressão ascética que se observa ao
primeiro olhar. Dois lábios, não muito grandes, onde não há sinal de palidez e
longas renúncias, entreabrem-se, carnudos e bem recortados, em vermelho vivo,
deixando entrever dentes brancos e regulares. A boca, assim aberta, parece,
porém, denunciar uma dificuldade de respiração, como se as narinas, apesar da
regularidade, fossem incapazes de cumprir a função e assegurar o comércio do ar
entre os pulmões e o mundo. Este contraste, entre a sensualidade da boca e a
quase imaterialidade do rosto, parece ser decidido pelos cabelos, modestamente
penteados, apenas um risco ao meio, fronteira a partir do qual caem para ambos
os lados, quase tapando as orelhas, para se esconderem, enlaçados, atrás das
costas. O pescoço não é longo e a parte inferior está coberta por uma gola
negra que sobe do vestido, também ele negro e destituído de qualquer artifício,
quase uma bata. Enquanto o braço esquerdo cai ao longo do corpo, o direito
flecte-se e mostra quatro dedos de uma mão delicada, à altura do seio, que
segura, com leveza, uma carta, a esperança que brilha no fundo dos olhos,
arrastada pelo desejo insinuado na boca.
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
Espalhar o fogo
Edward Moran - Unveiling The Statue of Liberty (1886)
As declarações do senhor Schäuble em defesa das políticas do anterior governo e de ataque às do actual são importantes, muito importantes. Não pelo seu conteúdo, o qual está sujeito à controvérsia das sociedades democráticas, mas pelo facto de terem sido proferidas por quem foram. Se fossem proferidas por Passos Coelho ou por Assunção Cristas seriam absolutamente aceitáveis. Se fossem a opinião de um qualquer cidadão alemão, não haveria nisso qualquer problema. Seriam controversas, mas fariam parte do jogo político O senhor Wolfgang Schäuble não é uma pessoa qualquer. É membro de um governo de um país parceiro na União Europeia. Manda o decoro que os dirigentes políticos não se intrometam na vida política de outros países, mas Schäuble há muito que perdeu o sentido do decoro político. Esta nova intervenção do ministro alemão das finanças mostra duas coisas. Em primeiro lugar, que o respeito pela democracia é cada vez menor entre as elites políticas europeias, fundamentalmente as do Partido Popular Europeu. Em segundo lugar, torna evidente que a Alemanha se acha no direito de intervir publicamente na política de outro Estado, opinando sobre aquilo que diz respeito à vida interna de outro país. Note-se bem que o problema não está no conteúdo do que é dito, uns acharão que é verdade e outras acharão o contrário, mas no facto de ter sido dito por quem deveria estar calado. O senhor Schäuble é um especialista em lançar o fogo. Parece que o objectivo, com estas intervenções neocoloniais, é, para além de condicionar a política interna de terceiros, incendiar a Europa.
terça-feira, 25 de outubro de 2016
Alma Pátria - 1: Tony de Matos - Só nós dois é que sabemos
Reproduzo neste blogue uma rubrica, que publiquei num blogue anterior, averomundo,
sobre a alma pátria, quero dizer da minha pátria, daquela onde cresci. O
chamado nacional cançonetismo é um retrato fiel do pequeno mundo que era
Portugal. Este vídeo é uma verdadeira lição sobre sociologia pátria. Mais uma
coisa: Tony de Matos era artista a sério, apesar de eu, na altura, isto é, mais tarde, achar tudo
aquilo execrável, ou não achar mesmo nada. A canção foi editada num EP, em
1962, ano em que entrei para a escola primária.
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
Descrições fenomenológicas 6. A fonte azul
Frantisek Kupka - Composição em azul (1925)
Duas buganvílias de brácteas cor de malva, de onde espiam pequenas
flores brancas matizadas por um amarelo discreto, ladeiam o pequeno lago,
crescem em direcção à fonte, sem a ordem trazida pela mão do jardineiro. Vivem em
equilíbrio precário, engavinhando-se no murete que retém a água, deixando-se
ondular, se sopra o vento, e recolhem-se na vigilância protectora de dois
carvalhos, cujas folhas, marcadas já por um acobreado irremediável, anunciam o
Outono decidido no seu caminho para o frio dos dias de Inverno. Estas árvores
formam um pálio sobre a fonte, como se esta fosse um andor revestido de uma
sombra divina. Um pouco mais à frente, divisa-se o descuido de ervas silvestres,
que disputam ente si o espaço do velho jardim. Ao longe, a floresta cresce
imperturbada pela decadência do antigo paraíso. Um oceano de carvalhos antigos,
pontuado, aqui e ali, por clareiras medianas, onde podemos ver, entre a azáfama
de enormes formigas, a decomposição das folhas, a sua lenta metamorfose em
húmus, que há-de vivificar a terra, num ciclo infinito de vida e morte. A luz
fria do dia tinge as árvores de um verde pálido e cai azul na água do lago. Um
pássaro, de penas castanhas, talvez um pardal, poisa e bebe, com rápidos
movimentos do pescoço, a água fria e parada da fonte. Um ruído ao longe, a ave
levanta voo e perde-se no céu azul reflectido no anil da fonte.
domingo, 23 de outubro de 2016
Rumores de Maio 20. Poemas do 1.º de Maio (I)
Edvard Munch - Workers Returning Home (1913-15)
20. Poemas do 1.º de Maio (I)
Elevam-se mãos
pelas avenidas
e uma gaivota
grita desvairada
ferida por um céu
de incertezas.
Nas veias, um
hálito amanhece
e as ruas,
mistérios a flutuar
entre ventos, roseiras
e frotas.
(Rumores de Maio, 1977)
sábado, 22 de outubro de 2016
Livro do Êxodo - 30. A mão fechada
Alfredo García Revuelta - Ciudad (1987)
Ergue-se na cidade um ramo
de oliveira, a estreita faixa deixada aos peões, o odor a óleo queimado a subir
nas narinas, os semáforos a piscar enlouquecidos pelo troar feroz dos motores. Ao
longe, para lá do poente, sobem nuvens, rios de lava roubados ao mar, a face
branca e lívida de um arcanjo desenhada em cartazes de papel brilhante, pelo
sol já queimados, riscos de tinta, o pólen da primavera a ensanguentar a
calçada. O riso soletrado na punção de um poema ergue-se, instante a instante, nas
sílabas desfeitas, no metro cambado, como as botas gastas de um velho lavrador,
na rima pobre, sem tino nem talento, sem o fogo das musas ou as trevas do
desespero. Ergue-se contra a luz do dia, inimigo da vida virtuosa, inimigo do
amor, inimigo de tudo o que os homens prezam na viagem que os conduz para a
morte.
Na cidade há um ritmo
escondido, uma poesia subterrânea, no fragor motorizado das máquinas, carros
incendiados, pequenas aves de cristal coladas aos vidros, também bandeiras da
pátria, uma camisa desfraldada na janela que se fecha, garrafas de cerveja pelo
chão, beatas de cigarro em floreiras onde nada floresce. Tudo acaba, assim
começaste, e foi nesse dia que descobri para que serve, se servir é o destino,
a poesia: onde a árvore deixa de ser árvore e o rio, rio, aí começa o poema, a
raiz a dilacerar a terra, a procurar o fundo, e as sílabas a crescerem no ar, longe
dos deuses, longe dos animais, talvez uns ouvidos a escutem, nesse balbuciar do
caminho, então começa. Desce iluminada na cabeça do poeta e este trabalha,
trabalha, num operar sem fim, para que a luz não se apague e o poema, já tísico
e enfezado, não morra por falta de energia ou levado pelo ronco do anoitecer.
Onde tudo acaba, tudo
principia. Na imperfeição da aurora, abrem-se as abertas janelas, desenham-se
pedras, planeia-se do mundo um mapa. Não poreis sobre ele alheio perfume, nem
holocausto, nem oferta alguma. A mão fechada, é isso um poema, oculta-se na
linha da paisagem, no traço de um rosto, no esboço do jardim, onde buxos e
buganvílias desfalecem ao calor da tarde. Ah esse grande sacrifício onde o
mundo se extingue num ritmo, na olaria que afeiçoa o barro das palavras, na
seta túrgida que corta a linha e lhes chama verso. Loiça tão transitória é a da
palavra, a que das mãos sai. Não é um grito nem uma luz. Não é um ofício de
orvalho nem um martelo de fantasia. Não é a flecha do amor ou espada do ódio.
Não é uma viagem de sonâmbulos nem um segredo no cofre guardado. É apenas cinza
do cigarro que vagarosa, tão vagarosa, cai.
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
Knut Hamsun
A minha crónica no Jornal Torrejano.
Como estamos em maré de Prémio Nobel da Literatura, este ano aberto a
larga controvérsia, viajemos até 1920. Nesse longínquo ano, a academia sueca
decidiu laurear o norueguês Knut Hamsun. Na altura, ele tinha chegado à casa dos sessenta anos, mas ainda estava longe o tempo em que ostentaria as
posições políticas que o conduziram a sérios problemas com a justiça e a um
grande ostracismo, tanto pessoal como literário, do qual só lentamente a sua
obra tem vindo a sair. Na verdade, Hamsun foi um adepto convicto do nazismo,
tendo apoiado a ocupação alemã da Noruega e o respectivo governo fantoche. Depois
da guerra foi detido por traição e julgado.
Este apoio está em linha com posições ideológicas que se manifestaram
desde muito cedo. O escritor norueguês cultivava, por um lado, um exacerbado
individualismo. Por outro, uma crítica sistemática à modernidade ocidental.
Estes dois traços, que não têm necessariamente de conduzir a um apoio à
ideologia nacional-socialista, são centrais na sua obra literária. Os heróis
são individualistas ostensivos, em conflito com as normas burocráticas da
sociedade moderna. A vitória do indivíduo não se deve à trama das relações
sociais, mas à sua vontade determinada em superar os obstáculos, sejam os
colocados pela sociedade, sejam os que existem na natureza. Este incensar da
vontade, algo que poderia também acontecer em alguém de orientação liberal e
democrática, combina-se com a rejeição da modernidade, a qual é vista como um
perigo para a relação fundamental do homem com a terra, por exemplo, no romance
Os Frutos da Terra.
Knut Hamsun foi, apesar do seu anti-modernismo, um dos escritores mais
importantes da transição do século XIX para o XX e um dos mais inovadores. Foi
pioneiro no uso de técnicas literárias como o monólogo interior e a corrente de
consciência que viriam a marcar toda a literatura do século XX. Apesar da
personagem política que foi, Hamsun merece ser lido e relido. A Cavalo de Ferro
Editores está a prestar um enorme serviço à cultura portuguesa e aos leitores
ao traduzir algumas das suas obras (Fome,
Pan, Victoria, Mistérios e Os Frutos da Terra). Por muito que as
posições políticas de Hamsun nos ofendam, e elas têm muito para ofender, os
livros que escreveu merecem ser lidos. Pode-se começar, por exemplo, com o
extraordinário, embora estranho, Fome.
Ou para quem ama o mundo rural com Os
Frutos da Terra. Boa leitura.
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
Descrições fenomenológicas 5. O pântano
Romeo Mancini - Antibes (1950)
Assediada pela luz do crepúsculo, a noite desliza e entrega-se,
inquieta, no alvoroço da aurora. Ouve-se o coaxar das rãs, um concerto
romântico a fender a primeira luz do dia, pontuado pelo som aveludado e grave
de um barítono sombrio, perdido naquele fim de mundo. Os choupos despidos pelo
Inverno são fantasmas descarnados. Erguem-se como sombras esguias, numa ânsia
de tocar o céu, arrepanhá-lo com os ramos finos, para prender, por um instante,
as estrelas que se desvanecem no oceano de luz que se aproxima. Os pinheiros,
aqueles que se misturam com os choupos, escondem ainda a sua cor, lembram
desenhos de criança recortados do papel e colados na paisagem. Os outros,
escondidos numa segunda linha, um exército secreto e ameaçador, são uma massa
negra, onde a noite ainda demora, renitente, quase lacrimosa pela partida. Em
metamorfose constante, maculado pelo combate entre a luz e as trevas, o céu cinde-se
em mil cores. Tudo se desdobra, porém, na frieza vítrea e imóvel do pântano,
como se a inverosimilhança deste lugar se desfizesse pelo exercício da
duplicação, que o reflexo nas águas sempre oferece aos olhos atónitos do
viajante matinal.
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
O preço da imaturidade
Estamos em período de discussão do orçamento de Estado. A discussão
que grassa por aí é, na verdade, irrelevante. É um problema de mercearia. A
mercearia, claro, tem a sua importância, mas a questão central está toda na
nossa ligação à Europa. E é esta ligação que merece ser meditada. Não por ela
mesma, mas pela forma como a fizemos. Tanto a adesão à então CEE como a posterior
entrada no Euro são marcadas por um espírito infantil. Tanto o cidadão comum
como as elites políticas confundiram uma associação de interesses egoístas com
uma organização de solidariedade e de entreajuda.
Esta confusão pueril pode-se explicar pelo grau de imaturidade da
democracia portuguesa. Esta nasceu num ambiente de ilusões, de grande
idealismo, onde a ideia de interesse próprio fora recalcada. Isso não nos
preparou para entrar num espaço onde se geriam e gerem conflitos com muitos
séculos de história, os quais giram em torno de interesses particulares e não
de ideias, ideais culturais e espírito de boa vontade. Foi esta imaturidade
política que não permitiu discernir os perigos que a desastrada gestão dos
aparentes benefícios da entrada no clube europeu continha. Bastou que a crise
do subprime de 2008 se repercutisse
nas crises das dívidas soberanas, para que se percebesse a realidade da União
Europeia, para que a visão ingénua que havia por cá se desfizesse em meia dúzia
de meses.
Com isto, não advogo a saída da União Europeia. Sublinho uma outra
coisa. Esta experiência pode ser um momento para compreender a realidade. A UE é
um clube de interesses conflituantes, onde o essencial é as relações de força e
não os ideais europeus. Estamos a pagar duramente o equívoco, e cada orçamento
de Estado é, com mais tonalidade social ou mais matiz liberal, um exercício de
punição. Punição de quê? Da nossa imaturidade, da confusão dos desejos com a
realidade. É também uma oportunidade de percebermos que antes de contarmos com
os nossos supostos parceiros temos de contar com as nossas forças, saber quais
são e até onde podemos ir. É uma humilhação um povo com nove séculos passar por
esta punição? É, mas esse é o preço da infantilidade (a expressão bons alunos, diz tudo) com que nos
relacionámos com o conjunto de velhas hienas que construíram a UE para se
vigiarem entre si. Entre hienas há que ser hiena ou, pelo menos, não confundir
uma hiena com o cão amigo que nos protege.
terça-feira, 18 de outubro de 2016
Rumores de Maio 19. Outro caminho
Francisco de Goya - No saben el camino
19. Outro caminho
Procuram os homens
outro caminho,
uma estrada
juncada de flores.
E nos dias de
verão pedem água,
ou silêncio, se os
fere a melancolia.
Magoado e inútil,
o esplendor do mundo.
Homens são
pássaros cegos, feridos,
o coração vazio,
perdidos no caminho.
(Rumores de Maio, 1977)
segunda-feira, 17 de outubro de 2016
O grande perigo
Sigmar Polke - Audácia (1986)
Há uma estranha sensação de que de que nós, ocidentais, vivemos tempos crepusculares, que a luz que ainda nos ilumina se dirige para poente e que, talvez mais cedo do que se pensa, virá a noite. Será assim? A resposta não é fácil e talvez mais importante do que essa resposta seja determinar a luz que ainda nos ilumina, a luz que permitiu erguermo-nos da noite e caminhar na claridade. Essa luz está determinada desde o início da modernidade. De Descartes a Kant, foi reconhecida como a razão. Foi a razão que iluminou o homem ocidental e lhe permitiu caminhar, no campo do conhecimento, para o espantoso desenvolvimento da ciência e, no dos costumes, para uma crescente emancipação dos indivíduos.
Parece contraditório, num tempo como o nosso, em que a ciência progride a um ritmo avassalador e o processo de emancipação dos indivíduos é maior do que nunca, falar em tempos crepusculares. De onde vem essa sensação de declínio que, desde há muito, se abate sobre o homem ocidental? A chave do problema poderá ser encontrada na expressão que Kant foi buscar ao poeta latino Horácio: Sapere Aude. A expressão é um imperativo que pode ser traduzido por Ousa Saber! Para Kant isto significava ter a coragem, a audácia, de usar a razão, de pensar por si mesmo. No século XVIII usar a sua própria razão exigia a audácia de enfrentar os que se pretendiam tutores da humanidade. O obstáculo a pensar por si gerava a energia que acabou por se transformar na luz que nos trouxe até aqui.
Nunca como hoje os indivíduos, no Ocidente, tiveram tanta liberdade de pensar por si, de fazer o uso da sua própria razão. Os obstáculos vêm sendo paulatinamente derrubados. Mais, o uso da razão tornou-se institucional. As universidades, os parlamentos democráticos, as instituições sociais e as próprias empresas são lugares onde o uso da razão foi instituído. É aqui, porém, que é necessário encontrar as razões para essa estranha sensação de vivermos um tempo crepuscular. A injunção kantiana pressupunha grandes obstáculos e dirigia-se ao indivíduo, à audácia deste em pensar por si.
Esta audácia - que é em si mesma uma energia que alimenta o desejo de usar a luz da razão - hoje parece desnecessária. E este é o grande perigo. A ausência de obstáculos internos e a burocratização institucional do uso da razão podem minar, e de certa maneira estão a fazê-lo, o desejo de pensar por si, de arcar com a responsabilidade do uso da razão. Por isso, este é um momento de perigo, pois a institucionalização do uso da razão dá a sensação de que esse uso na vida é um dado adquirido. Não é. Por contraditório que possa parecer, o uso da razão exige audácia, a qual é a energia que alimenta a paixão pela razão. A sensação de fim que acomete o Ocidente nasce da extinção do desejo, do apagamento da paixão pelo pensar por si mesmo. Como em muitos casamentos, a extinção do desejo pode conduzir a um divórcio muito desagradável.
domingo, 16 de outubro de 2016
Descrições fenomenológicas 4. O canal
Eduardo Gruber - ¿S/T? (1999)
As águas do canal, na sua limpidez, devolvem a imagem de casas e
arbustos erguidos na margem. Um mundo duplicado, cheio de cores, sombras e luz.
Dois barcos flutuam, presos a terra, à espera de alguém que os faça deslizar sobre
as águas. Na margem direita, uma primeira casa, talvez um depósito, exulta no
laranja e ocre e quase nos faz esquecer a ausência de janelas, como se ali
fosse um lugar de clausura, onde só alguém devidamente autorizado pudesse
entrar. Logo a seguir, um prédio de cores carcomidas pelo passar do tempo, de
três andares, com pequenas janelas fechadas. Mais à frente uma nova casa,
pintada de branco e com porta azul. Sobre esta, uma pequena janela circular,
quase um olho, denuncia um sótão. Entre ambas as habitações, crescem arbustos,
bem cuidados, onde a luz se matiza em diversas gamas de verde, um catálogo da
natureza que se oferece aos olhos do viajante. Na margem direita, um renque de
arbustos amarelos antecede novas habitações, uma casa semicoberta por árvores e
um prédio, de múltiplos andares, pintado de branco, com porta, varandas e
janelas azul de Prússia. Por detrás, germinam os campos recortados por figuras
geométricas perfeitas, campos com pastos a crescer para a fome dos rebanhos.
Hão-de vir das grandes casas perdidas do convívio da aldeia, casas de paredes
soturnas envolvidas por um halo de solidão, pelo cansaço que os campos sempre
deixam naqueles que os habitam. Ao longe, as montanhas olham benevolentes a
paisagem e estendem sobre ela o manto protector da sua sombra, enquanto no
canal, a água desliza na transparência levando consigo o reflexo das margens, o
retrato fluido da aldeia.
sábado, 15 de outubro de 2016
Livro do Êxodo - 29. Era tudo tão pardo
Antonio Tápies - Relieve gris. Nº VIII (1957)
Era tudo tão
pardo. Ruas maculadas pela poeira, cães sarnosos a rosnar a quem passava, e se
rosnavam em fúria exaltada, buracos no alcatrão, rapazes a correr, raparigas a
espreitar pelos olhos encovados, os dias mergulhados em cinza e sombra, mesmo
se solares. Era tudo tão pardo, e nas janelas, estreitas janelas rasgavam as
paredes, assomavam cabeleiras desfeitas, homens em camisola interior, gritos
pelas casas, se a névoa vinha, bandos de pássaros a caminhar para o sul, regatos
informes, se chovia. Ouvia-se rádio, telefonia diziam, uma música fanhosa decorava
os dias, estes a correr em direcção a outros e mais outros, rios de horas sem
curvas, nem sobressaltos, a não ser a doença, a morte súbita, um vidro que se
partia.
E pão ázimo, e bolos
ázimos, amassados com azeite, e coscorões ázimos, untados com azeite, tudo isso
e ainda as mãos que me afagavam a cabeça e me deixavam suspenso na ilusão de um
brilho no horizonte da noite, se caminhasse, se caminhasse sem parar, passasse
por florestas e rios, por estradas sem nome ou terras sem gente. Tudo se
resumia, na quimera que então se arvorava, a pôr os pés à estrada, e não voltar
mais a cabeça, deixar a água para sempre presa nas bilhas de barro, cântaros
lhes chamavam, o balde a apodrecer dentro do poço, os jornais velhos adormecidos
na arrecadação, as árvores carcomidas pelos insectos da tarde, e um cansaço tão
grande na sombra que curvava para a ferrugem o ferro que era a alma.
Os rapazes
sonhavam com raparigas, os seios duros, as coxas frementes, o sexo molhado, a
boca florida pela saliva que nela corria. Rapazes e raparigas, como os vejo ao
longe, também eles pardacentos, invadidos pela cinza, como se tivessem incoado
no restolho ardido da vida. Se a noite estrondeava, encolhiam-se entre lençóis,
e adormeciam com o cheiro acre da madeira ardida, e como ela ardia, entranhado
nos ossos, preso nos cabelos, cravado no escuro coração que os habitava. Não
havia, por esses dias, anjos, nem relâmpagos, apenas a escuridão depois da luz
apagada, os olhos a antecipar a morte, assim ela virá, o mundo a esvair-se, a
memória a fincar o pé. De tudo isso queria enxertar imagem no ramo vesgo do
tempo, na carcaça mórbida da memória e dizer, num murmúrio incompreensível, a
vida assim fora e calar-me.
Era tudo tão
pardo e nem dias de pão ázimo havia, nem raparigas ao sol, apenas aquelas que
nasciam despidas em calendários sonâmbulos, calendários que marcavam o lento
empardecer da vida e enfeitavam os lugares, todos os lugares, onde os homens se
juntavam para falar, e como eram tão sérios ao falar, de coisas da bola, ou da
vida, ou do mundo, como se tudo isso não fosse a mesma coisa e eles precisassem,
sem renúncia ou desespero, daquelas raparigas acaloradas, a saltar para os meus
olhos, para se cumprirem na solidão que era a deles, ou as terem por testemunho
das conversas, tão sábias conversas eles tinham nas tardes intermináveis dos
sábados.
Era tudo tão
pardo, as casas, os campos, a erva raquítica que crescia pelo Verão, as águas
do fim do Outono, os caminhos que sulcava se me perdia de mim, as vozes que
ouvia no rumorejo da tarde, alguma cobra, os cães rafeiros perdidos pela
estrada a uivar ao crepúsculo. Era tudo tão pardo, menos as noites negras, onde
brilhavam estrelas e, na sintaxe astronómica que então as regia, os meus olhos
cresciam, entre constelações, para além do mundo, para o país do silêncio, palavra
alguma ali se articulava, sem fronteiras nem rios nem mares, apenas a luz estelar
e o sussurro do vento a encher a noite de fantasmas. Riam, se os olhava e desapreciam
envoltos na capa pardacenta do tempo, da vida os levaram sem um grito sem um lamento.
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Grandes autores e nazismo
Arthur Kampf - Victory in 1933 (1938)
Informação 1: cartas do filósofo alemão Martin Heidegger ao irmão confirmam a sua adesão ideológica ao nazismo e ao anti-semitismo. Informação 2:
estou a ler o romance Os Frutos da Terra,
do norueguês, Nobel da literatura, Knut Hamsun, um simpatizante confesso do nazismo e que, por isso mesmo, teve um fim de vida miserável. O que faço com
estas informações? A questão não é fácil. O nazismo não foi apenas uma mera
ideologia, mas uma prática política de contornos éticos abomináveis. Recordo
uma passagem de um dos volumes da Conta-Corrente,
de Vergílio Ferreira, em que este comentava o assassinato da mulher do filósofo
marxista e estruturalista francês Louis Althousser pelo próprio marido. Não
consegui encontrar essa entrada, mas em linhas gerais, nunca a esqueci, o
escritor português perguntava em que linha da filosofia de Althousser se
inscrevia aquele homicídio. E se não se inscrevia em nenhuma, para que servia,
a Althousser, a sua filosofia?
O que, nas concepções filosóficas de Heidegger ou nas estéticas de
Hamsun, justificará a adesão de ambos às crenças políticas e morais de Hitler? A
questão levantada por Vergílio Ferreira a propósito de Althousser retorna aqui em
toda a sua força. Se ambas não têm nada a ver com o seu apoio ao nazismo, se
não têm nada a ver com a sua decisão de aderir a tão visceral ideologia, então
para que servem? E no entanto somos obrigados a reconhecer que nas obras de
ambos há uma grandeza que exige que suspendamos, para os ler, a nossa repulsa
ética e política. A minha posição durante muito tempo, e ainda hoje, é aquela
que aprendi com a leitura do filósofo francês Paul Ricœur: devemos ler as obras como
se nada soubéssemos dos seus autores, como se elas fossem anónimas. Só as obras
deverão falar por si. Mas casos como os de Heidegger e de Hamsun, ou mesmo de Louis-Ferdinand
Céline, desafiam esta crença e sublinham a pertinência do comentário de
Vergílio Ferreira ao acto de Althousser.
No entanto, a posição de o autor de Manhã Submersa assenta numa crença discutível. Funda-se na ideia de
que os seres humanos são um todo coerente e que há neles uma racionalidade
sólida que liga as diversas coisas que fazem, que liga o seu pensamento e a sua acção.
Só essa crença justifica a ideia de que uma posição filosófica deverá
justificar um acto tão radical como o assassinato da própria mulher. Mas será
mesmo assim? Não será a coerência um ideal regulador que tem por fim dar um
sentido unívoco àquilo que o não tem? Não será a vida de todos nós muito mais
incoerente do que aquilo que supomos e do que aquilo que os outros exigem de
nós? Com isto, não estou a negar a existência de um fio que leva das crenças filosóficas e estéticas às opções políticas de Heidegger e de Hamsun. Estou apenas a chamar a atenção que uma conexão imediata e mecânica é muito problemática.
Por outro lado, o facto de Heidegger e Hamsun terem sido consumados simpatizantes nazis é
menos importante do que se pensa. Só será importante para os eventuais epígonos.
Alguém que se pretenda filosoficamente heideggeriano ou literariamente
hamsuniano, mais improvável, sentirá a ligação deles ao nazismo como um ferrete
que sombreia a luz da sua adesão. Os outros lerão as obras por elas mesmas,
sabendo que os seus autores tinham perspectivas ideológicas inaceitáveis, mas
que, em última análise, essas obras deverão ser julgadas pelo seu valor intrínseco, na sua eventual
grandeza e na sua eventual miséria. Heidegger, Hamsun, Céline, Althousser não eram
anjos, mas homens, e estes são capazes do melhor e do mais abominável. E isso acabará por se infiltrar no que se pensa e no que se escreve. Ler,
seja filosofia ou literatura, não é um acto de adesão, mas um exercício do
olhar que tem por finalidade ver o que ali se manifesta.
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Rumores de Maio 18. Levantam-se ondas pelo mar
Emil Nolde - Dark Sea (Green Sky)
18. Levantam-se ondas pelo mar
Levantam-se ondas
pelo mar.
Revoadas de limos
e água,
seixos, conchas,
algas,
sombras húmidas ao
luar.
Na harmonia do
oceano,
pela noite escura,
escrevo poemas.
Faróis acesos
em barcos lavrados
no segredo da
clausura.
Haverá em cada
praia
uma morte por
desaguar,
uma sombra que
caia
na noite negra do
mar.
(Rumores de Maio, 1977)
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
Um abuso cruel
Nicolas Poussin - The dance to the music of time (1640)
O Público noticia que um estudo do blogger da área da educação, Alexandre Henriques, do ComRegras, mostra que os alunos de seis anos - primeiro ano de escolaridade - têm uma carga horária superior aos aluno do 12.º ano. O autor chama ainda a atenção para o facto dos alunos de 3.º e 4.º anos de escolaridade serem aqueles que possuem a maior carga lectiva de toda a escolaridade obrigatória. O que se passa com as cargas horárias exorbitantes dos alunos, em especial os do primeiro ciclo, é apenas um exemplo de como se resolvem os problemas neste país.
Os alunos não aprendem o que devem aprender. Então, em vez de se melhorarem os métodos de trabalho e a sua eficácia, obrigam-se as crianças a ficar mais tempo na escola. O trabalho nas empresas tem baixo rendimento, então aumentam-se os horários de trabalho. Esta tendência do sul da Europa, com grande destaque para Portugal, é um dos abusos mais cruéis que se fazem sobre as pessoas. O tempo é o bem mais precioso que cada um tem. A forma como esse tempo é gerido deveria ser um critério decisivo da qualidade das instituições públicas ou das empresas privadas. Abusar do tempo dos outros, como é o caso dos múltiplos ministérios da educação que temos tido, ou permitir que as empresas abusem é premiar a incompetência.
Quem não sabe organizar as aprendizagens ou quem não sabe organizar o trabalho recebe o prémio de poder ter à sua disposição o tempo dos outros, obrigá-los a desperdiçar, devido à incapacidade dos responsáveis, o bem mais precioso que cada um de nós recebeu ao nascer. O que acontece com as crianças em Portugal é um abuso absurdo. Como são absurdas as cargas horárias que são impostas por muitas empresas que, de forma mais ou menos encapotada, ocultam a sua incapacidade e gestão através do abuso do tempo dos seus trabalhadores. As pessoas precisam de trabalhar e de aprender, mas isso não significa que tenham de dedicar grande parte da sua vida a fazer tarefas que foram mal planeadas e mal organizadas. Abusar do tempo dos outros deveria ser visto como um ataque inaceitável aos direitos humanos.
terça-feira, 11 de outubro de 2016
Livro do Êxodo - 28. As romãs de cárdeno
Valle Julián - Plato con granada
Há no vento que cobre o mundo um excesso
de palavras, a voz rouca, quase sombria no oceano encapelado da mudez, a pele
marcada pela luz, tão luminosa, da ferrugem, a feroz ferrugem que cai vinda nem
se sabe de onde. A água precipita-se, presa em apressada pressa, e foge para o
mar e tudo se torna silente, entregue a uma longa maturação, anos sobre anos, o
pão a levedar, as roupas novas a envelhecer sobre a pele, a dormirem exaustas
no fundo de uma arca, na escura noite do esquecimento. Porque afagas a madeixa
que te cobre a testa? Os olhos inclinam-se para o chão, as pálpebras descaem, um
barulho de romãs, as velhas romãs de
cárdeno que no quintal colhias, cerca-te no poço da solidão.
Quando desenharam as estradas, em
estirador sem gruas nem máquinas, um lugar sombrio, o sol dali fugira, não
ouviram o ranger da terra, os gritos do corpo ferido pelo ferro, as pálidas flores
silvestres decepadas, animais em fuga, uma promessa de alcatrão e um incêndio
de carros a voar, estrada fora, tudo a crescer em estreitas linhas vermelhas,
no papel que um dia te disseram: este é o teu país e aqui a casa de teus pais e
aqui a escola onde estás. E tudo isso cresceu como uma promessa cantante, a
cantar no desvão do cérebro ou na fímbria do coração, uma promessa que
escondias se chegavam as chuvas, sempre tão molhadas, e pequenos rios nasciam
da fonte dos teus olhos e inundavam a terra seca, a terra onde, entre romãs,
havia pegadas, os teus pés as deixavam.
Era uma pátria incerta, de fronteiras
volúveis, bordada por mãos cuidadosas, as tuas mãos feitas de memória e lírios
enlouquecidos, onde roncavam animais perigosos, peixes voadores a cruzar os
ares e aves palmípedes a escancarar a boca, se a noite caía, e tantas vezes, ainda
dia, a noite sobre ti caía, depositava trevas nos teus olhos, arremessava
negrumes pelo ventre, murmurava-te silêncios batidos pelo vento. Era assim que eu
amava o teu país, mesmo quando a madeixa te cobria a testa, e gritavas: e em
suas bordas farás romãs de cárdeno, e púrpura, e carmesim ao redor de suas
bordas, as volúveis fronteiras que iam e vinham na ondulada respiração de teus
seios, luas bravias, às minhas mão anoiteciam. E eu cantava à beira do abismo,
tocava uma harpa de dor e enterrava na lama, tão enlameada, os pés e, com eles,
o fogo do teu coração ou as romãs de cárdeno que em ti havia.
segunda-feira, 10 de outubro de 2016
Táxis, nómadas e sedentários
Red Grooms - Taxi (1968-1970)
O conflito que opõe os taxistas tradicionais às novas plataformas digitais de gestão do transporte individual, como a Uber, é apenas mais um episódio da velha luta do homem contra o desenvolvimento tecnológico. A aplicação tecnológica do conhecimento científico ou o mero desenvolvimento empírico da maquinaria, como no início da revolução industrial, têm o poder de tornar os homens, aqueles que foram educados dentro de um mundo tecnológico determinado, obsoletos. É conhecida a grande reacção dos ludditas, em Inglaterra, contra as máquinas, bem como a tenebrosa repressão, (ver aqui). Os taxistas são os ludditas do momento. São apenas mais um exemplo dessa reacção contra os novos dispositivos tecnológicos ou de gestão.
Não me interessa discutir aqui sobre quem tem razão. Quero chamar antes a atenção para duas categorias que se tornaram centrais no mundo contemporâneo. Podemos dar-lhes os nomes de sedentarismo e de nomadismo. Durante muito tempo os sedentários foram dominantes. Asseguravam a solidez das instituições, das regras e das funções. O desenvolvimento da economia de mercado e da aplicação do conhecimento ao mundo das empresas veio alterar radicalmente a importância de nómadas e sedentários. Os sedentários estão condenados à obsolescência. Podemos admirar neles a revivescência do sentimento luddista e o culto pela saudade, mas percebemos que, a não ser que o mundo regrida para uma sociedade onde a ciência seja proibida, estão condenados à obsolescência.
Os nómadas não devem ser vistos como aqueles que a cada instante se deslocam no território físico. Isso pode acontecer, mas os territórios em que se movem estão ligados às novas tecnologias, marcados, fundamentalmente, pela crença na transitoriedade de tudo o que diz respeito ao mundo da economia e, mesmo, da política. Estão ligados à aquisição contínua de novas competências sociais, cognitivas e profissionais. O que é dramático em tudo isto - para além da dor pessoal de quem fica obsoleto - é que a preparação das novas gerações pouco tem a ver com a condição nómada. As escolas, tal como existem, foram pensadas para formar a burocracia do Estado. A sala de aula, tão incensada por professores, é o resumo das virtudes burocráticas e do culto do sedentarismo. A revolução tecnológica em curso - uma revolução permanente, para falar à maneira dos velhos trotskystas - exige que as novas gerações sejam educadas como nómadas. Que saibam que aquilo que fazem hoje não terá futuro amanhã. Que toda a vida é um processo de aquisição de novas competências e novos conhecimentos, uma viagem de um saber fazer para outro. É cansativo? É, claro que é. Terá, porém, a espécie humana outra solução? Talvez tenha, mas será que a queremos?
domingo, 9 de outubro de 2016
Descrições fenomenológicas 3. A avenida
Juán José Vera - Azul (1982)
Tenso, o braço desloca-se quase na horizontal e volta ao ponto de
partida. Ouvem-se ruídos de um pequeno motor, mas logo desaparecem. O homem,
vestido de fato-macaco verde, com um nome de empresa indecifrável estampado no
peito, puxa uma corrente. Insiste, uma e
outra vez, até que o corta-relvas ribomba num dos relvados entre prédios, para
se tornar um contínuo monótono de pequenas explosões. A paz da avenida é quebrada,
o dia inaugurado, trazido da obscuridade da noite para a corveia do dia. A
manhã cresceu e os raios de sol batem nas árvores, despertando os homens para
os afazeres que os dobram para terra, curvados ao peso do dever. Um carro, cor
de cinza, pára lentamente. A porta do lado direito abre-se, uma rapariga,
talvez nos seus quinze anos, de mochila na mão, logo a põe às costas, sai e
dirige-se, vergada ao peso, batida pelo vento, para a entrada da escola. O Sol
ilumina as copas das árvores e, olhadas de cima, as folhas mostram já manchas
de cobre a anunciar o vigor do Outono. Em breve a calçada estará juncada desses
restos de vida tomados pelo cansaço, seduzidos pela gravidade, numa girândola
de cores quentes, como se prenunciassem o Inverno a vir. Da porta de um dos
cafés, sai uma mulher, os passos firmes sobre uns saltos que lhe diminuem a
pequenez, a enchem de confiança, a confiança com que empunha o comando e faz
deflagrar o ruído do fecho central do carro e o súbito acender dos quatro
piscas, que logo se desvanecem. Abre a porta e senta-se ao volante, sem cuidar
que a saia lhe sobe pernas acima e as entregue à devassa de um transeunte, de
fato escuro e coçado, que aceita, cobiçoso, a dádiva, com um olhar sonhador e
implorativo. Ouve-se o zumbir do motor, o carro recua do estacionamento, entra
na estrada, perde-se numa rotunda, vai-se dos olhos do homem, onde, por
instantes, tinha dançado a esperança de sentir as mãos no oceano de uma pele
oferecida ao império do desejo. Um pombo desliza, bate as asas, esconde-se na
sombra de uma nuvem. Lá em baixo, rapazes e raparigas afadigam-se para dentro
da escola, curvados ao peso dos livros, gesticulam, falam alto, enchem a manhã
de palavras obscenas e risos estridentes. Quando a campainha toca, uma folha
desprende-se do ramo e cai hesitante, batida pelo vento agreste, na pedra dura
e gasta da calçada.
sábado, 8 de outubro de 2016
Rumores de Maio 17. Arde em ti uma palavra rasgada
George Seurat - Mulher sentado num prado (1882)
17. Arde em ti uma palavra rasgada
Arde em ti uma
palavra rasgada
no umbral anónimo
da noite.
Um punhal, uma espada
incendiada,
o silêncio cru na
casa da morte.
A duração eterna e
sanguínea,
o leve crepitar
do sal na lareira,
a noite rosada e
fria de uma fêmea
a crescer nos
dedos ao silvo da fogueira.
Árvores de
palavras no horizonte,
onde pássaros
azuis e tardios
colhem água na
sombra da fonte.
Um punhal, uma
palavra incendiada,
uma névoa oval de
pássaros esguios
abertos à morte, ao rumor da madrugada.
(Rumores de Maio, 1977)
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
Elena Ferrante
A minha crónica no Jornal Torrejano.
Hoje deixo o comentário político de lado. Falo de Elena Ferrante. Não
por causa da polémica em torno da revelação da sua identidade. Até aqui não se
sabia quem era a pessoa que escrevia os livros assinados com aquele nome.
Surgiu agora uma teoria, que se pretende fundamentada, sobre a identidade
autoral. O importante, porém, são os seus livros e não esta historieta. Refiro-me
à tetralogia napolitana (1. A Amiga Genial; 2. História do Novo Nome; 3.
História de Quem Vai e de Quem fica; 4. A História da Menina Perdida). Estes
quatro volumes trazem-nos desde o fim da segunda guerra mundial até aos tempos
recentes, a partir da história de duas amigas que cresceram num bairro pobre e periférico de Nápoles.
Pessoas da minha geração – que nasceram já bem depois do fim da
segunda guerra mundial – encontram ainda muitos pontos de contacto entre as
histórias de vida narradas e as situações descritas nos livros e a realidade
portuguesa. Falando de italianos, a autora fala da Europa do sul. É verdade que
não temos fenómenos como a Camorra, nem o terrorismo em Portugal, com as FP 25
de Abril, alcançou os contornos do terrorismo italiano, como o praticado pelas
Brigadas Vermelhas ou por organizações fascistas. A vida social, porém, tem
muitos pontos em comum com a nossa. A pobreza dos bairros periféricos, mas
também os amores e desamores daquelas gerações, a ascensão social e a queda,
até o domínio que as elites – mesmo as de esquerda – impõem sobre os que vêm
debaixo. Tudo isto, bem como certos ambientes descritos, poderia passar-se em
Portugal.
Recomendo vivamente a leitura destas quatro obras. Não apenas pelo
escrita brilhante da autora, mas porque elas permitem-nos reflectir sobre nós
próprios, sobre a nossa sociedade. Com uma vantagem. Como os romances estão
situados noutro lugar, sentimos menos a necessidade de tomar uma posição
imediata sobre o que eles nos dizem. A sua leitura, para além do grande prazer
que proporciona (o leitor sente-se obrigado a não parar) faz-nos pensar, cria
um distanciamento que nos permite meditar sobre o que lemos e, depois,
descobrir que, em muitos aspectos, também somos assim. Para o bem e para o mal.
Eu sei que todos temos mais que fazer, mas ler a grande literatura (e não o
lixo que se publica todos os dias) não é apenas uma questão de cultura. É uma
questão, volto a referir, de prazer. E não há felicidade sem os grandes e os
pequenos prazeres. Elena Ferrante tem o poder, através do romance, de gerar um
prazer enorme nos seus leitores.
quinta-feira, 6 de outubro de 2016
Livro do Êxodo - 27. O salário da ceifeira
Ángel Orcajo - Ocaso incandescente (1993)
Havia cifras difusas entre
carros, ruas cobertas de colmo, olhos desconhecidos empoleiravam-se no vão de
uma escada e a luz, a eléctrica luz da madrugada, desfalecia, pois a loucura
vinha beber, às primeiras horas, o álcool nas veias da cidade impregnadas de
óleo, eram agora avenidas, cobriam-se de carros a voar entre semáforos, verde,
amarelo, vermelho, um, dois, três, é a tua vez e lá vão rompendo vísceras,
rebentando intestinos, trazendo na mão o coração, sagrado coração, exangue,
mortal na palidez do dia que nasce. E assim a cidade foge da noite, abre uma
janela por onde entra, difusa, a luz pálida, que há-de ser intensa ao meio-dia
e declinar quando o cansaço a entregar ao ruído da noite, à ânsia das trevas, à
corveia da electricidade, ao império febril da triste ceifeira.
Para fazer acender as
lâmpadas continuamente havia um mecanismo. Nunca o descobri, mas acendiam e a
cidade era iluminada, as sombras cresciam, o vento uivava, o uivo era o seu
destino, enquanto as mulheres, pés brancos no caminho, sonhavam um longo
assassínio, homens decepados, braços a rolar pelo chão, a mão aberta, o
indicador já retorcido. Um bêbado entoava canções indecorosas, a voz arrastada,
as putas de sobreaviso e um grito vindo da viela, tudo à luz eléctrica da
noite, onde anjos sobrevoavam incógnitos a cidade e recolhiam destroços, compunham
orações e diziam o nome dos mortos, já desfigurados, aqui e ali tombavam, voavam
das sacadas cobertas de vidro acrílico, um rasto de alumínio, chocavam nas
luzes de néon e cobriam a noite de estrondos, tão fecundos que os eléctricos paravam
com guinchos de ferro sobre ferro, ateavam constelações nos carris, e a vida
continuava, como se nada tivesse acontecido, nada acontecera, e tudo continuava
perante a cegueira dos que viam e cantavam e saltavam.
A morte ali acampara com
seus olhos encovados, a foice, a ela lha deram, em riste, um lápis na mão, uma
lista branca, enegrecida pelo uso, a boca aberta, como se tivesse sono e ainda não
pudesse à cama recolher. E assim ia ela, entre carros e gente, procurava, os
olhos esbugalhados, a sua mercadoria, o comércio a esperava, e ia, disciplinada
e soturna, enjoada com o cheiro a vida, recolhendo um aqui, outra ali, e
riscava nomes, fazia cálculos, consultava calendários, como aqueles que há nas
oficinas de automóveis, mas de raparigas desfiguradas, tomadas pelo verme que
ela, distribuía entre vivos, para que rolassem sobre si e a ela se entregassem.
E como nos campos, também assim nas cidades, pois tudo é um grande mistério,
tão grande que nem a morte o compreende, limita-se a cumprir ordens, a andar de
rua em rua, casa em casa, sempre destratada, não fora um ou outro suicida e até
a esperança de ser amada morreria. Resta-lhe receber o salário pago em moeda
negra, de uso corrente, neste lugar onde as leis do mercado, sempre tão sagradas, não funcionam. Às
cifras difusas ninguém lê, pois tudo é mistério e se abro uma mão, logo um anjo
ali poisa e em silêncio adormece.
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
Um 5 de Outubro normal
O princípio republicano – hoje enunciado pelo Presidente da República –
de que o poder político não pertence a ninguém é a razão pela qual sou
republicano. Essa é a minha identidade política mais funda, mais do que a inclinação
à esquerda. No 5 de Outubro não se comemora apenas o fim de um regime, o monárquico,
e o começo de outro, o republicano. Assinala-se, como salientou Marcelo Rebelo
de Sousa, a transitoriedade do poder e o facto desse poder – mesmo que seja o
da mera representação – não ser exclusividade de ninguém ou de nenhuma família.
O povo dá o poder, o povo o retira, segundo regras escritas, conhecidas por
todos. Isto é o mais razoável. E esta razoabilidade é, para mim, o mais
importante. Que o anterior governo tenha acabado com o feriado do 5 de Outubro
diz muito sobre esse governo e sobre os princípios que o orientavam. Na
verdade, esse acto, mascarado com motivações económicas, torna manifestos certos anseios que percorrem, ainda agora, parte da direita portuguesa. Hoje foi um 5 de Outubro normal. Comemorado no
próprio dia, por um Presidente da República que não tem vergonha de ser
republicano.
terça-feira, 4 de outubro de 2016
Descrições fenomenológicas 2. A viúva
Gerardo Rueda - Alcalá (1960)
Negro, o véu cai-lhe sobre os ombros nus. O vestido, também preto,
bordejado a branco no decote, acentua a tristeza que lhe escorre dos olhos, tão
escuros quanto a noite, e inunda o rosto, marcado por um nariz afilado,
cortante, que encima, quase ameaçador, a boca. O lábio superior fino, a lembrar
longas asceses, contrasta com a generosidade do inferior, tocado por um leve
ensejo de ser beijado, de se entregar ardoroso a outros lábios. Esta diferença
labial, tão comum, deixa antever o conflito, entre a frieza meditativa e o
ardor vital que se esconde na alma. O rosto, apesar da tristeza lutuosa que
aparenta, não o consegue disfarçar. Os seios não são generosos. Pelo contrário,
o vestido deixa percebê-los contidos, um novo disfarce, também comum em tantas
mulheres. A melancolia da sua imagem faz adivinhar um exercício contínuo para
limitar uma sensualidade secreta que, encontrando quem a saiba detonar, se
torna, apesar de silenciosa, transbordante. A mão direita repousa sobre o
ventre; a esquerda, pousada nas costas de uma cadeira, segura um lenço branco.
Negro e branco. E tudo nela é contraste, conflito, contradição. Leva o lenço ao
rosto, enxuga uma lágrima irreprimida, dá uns passos em frente e sai, batendo a
porta com indisfarçado descuido.
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