“E o vencedor é: o muro de Berlim!!!!” Este é o título da crónica
de hoje, no Público, do antigo
embaixador Fernando d’Oliveira Neves. Vale a pena fazer uma longa citação: Teria razão Putin, quando disse que a maior
catástrofe do século XX tinha sido o colapso da União Soviética? Foi a ameaça
soviética e dos partidos seus sequazes que originou o período ímpar de
prosperidade e respeito pelo ser humano que o Ocidente conheceu depois da
Segunda Guerra Mundial? Não foram os valores, a que tanto aludimos, que
gostaríamos de ver como elemento agregador da Europa e do mundo civilizado?
Bastou o desaparecimento dessa ameaça externa e interna para nos lançarmos numa
aventura que subverteu as políticas económicas e sociais que estiveram na base
do processo solidário de integração europeia e nos confina a uma situação de
grande vulnerabilidade perante os diversos tipos de ameaças inesperadas que
hoje nos atemorizam.
A palavra ameaça surge duas vezes e revela um elemento central na vida
política: o medo. A ameaça é aquilo que suscita o medo. E este torna as partes
prudentes, conciliadoras, dialogantes e menos propícias à desmedida. É na obra Les Soirées de Saint-Pétersbourg ou
Entretiens sur le gouvernement temporel de la Providence (1821) que o grande
inimigo da Revolução francesa, o conde Joseph de Maistre, faz, com elevado
fulgor literário, o encómio do carrasco, transformando este numa espécie de
entidade metafísica que, na sua solidão, cumpre as terríveis tarefas de
torturar e executar os homens, sendo, por isso, o alicerce de toda a ordem
social.
As sociedades que proibiram a tortura e aboliram a pena de morte não
serão o contra-exemplo que torna patente a inutilidade dessa figura metafísica?
Aparentemente sim, mas se não nos deixarmos encantar pela descrição feita por
Maistre e percebermos o que ela significa, então o texto de elogio do carrasco
ainda faz sentido. O carrasco é uma das figuras que o medo tomou na
estruturação da vida social dos homens. O que o conde
saboiano elogia é o papel do medo, do medo que nasce da violência legítima.
A violência legítima nas sociedades democráticas perdeu os contornos
bárbaros que ainda tinha no século XIX, mas ela não deixou de existir. O medo social,
porém, não provém apenas dessa violência legítima exercida a partir do poder. Ele nasce ainda das
interacções sociais, do choque de interesses, do poder fáctico que os grupos sociais e os indivíduos possuem. O embaixador
Fernando d’Oliveira Neves chama atenção para a assimetria na capacidade de gerar medo que se estabeleceu,
nas sociedades europeias, após a queda do Muro de Berlim, entre os vários grupos sociais. O
equilíbrio da capacidade de amedrontar gera sociedades dialogantes, que
procuram, através da negociação, os interesses de todos, gera sociedades onde os direitos humanos são respeitados. Onde a assimetria do medo triunfa – onde só
uma das partes tem o poder de dar ordens ao carrasco
– desaparece a cooperação que, mesmo em países com eleições credíveis, é
substituída pela simples dominação. É isto que também está em causa na nossa
velha Europa, que, por instantes, viveu, mas que cada vez menos vive, um período ímpar de prosperidade e respeito
pelo ser humano.
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