Sigmar Polke - Audácia (1986)
Há uma estranha sensação de que de que nós, ocidentais, vivemos tempos crepusculares, que a luz que ainda nos ilumina se dirige para poente e que, talvez mais cedo do que se pensa, virá a noite. Será assim? A resposta não é fácil e talvez mais importante do que essa resposta seja determinar a luz que ainda nos ilumina, a luz que permitiu erguermo-nos da noite e caminhar na claridade. Essa luz está determinada desde o início da modernidade. De Descartes a Kant, foi reconhecida como a razão. Foi a razão que iluminou o homem ocidental e lhe permitiu caminhar, no campo do conhecimento, para o espantoso desenvolvimento da ciência e, no dos costumes, para uma crescente emancipação dos indivíduos.
Parece contraditório, num tempo como o nosso, em que a ciência progride a um ritmo avassalador e o processo de emancipação dos indivíduos é maior do que nunca, falar em tempos crepusculares. De onde vem essa sensação de declínio que, desde há muito, se abate sobre o homem ocidental? A chave do problema poderá ser encontrada na expressão que Kant foi buscar ao poeta latino Horácio: Sapere Aude. A expressão é um imperativo que pode ser traduzido por Ousa Saber! Para Kant isto significava ter a coragem, a audácia, de usar a razão, de pensar por si mesmo. No século XVIII usar a sua própria razão exigia a audácia de enfrentar os que se pretendiam tutores da humanidade. O obstáculo a pensar por si gerava a energia que acabou por se transformar na luz que nos trouxe até aqui.
Nunca como hoje os indivíduos, no Ocidente, tiveram tanta liberdade de pensar por si, de fazer o uso da sua própria razão. Os obstáculos vêm sendo paulatinamente derrubados. Mais, o uso da razão tornou-se institucional. As universidades, os parlamentos democráticos, as instituições sociais e as próprias empresas são lugares onde o uso da razão foi instituído. É aqui, porém, que é necessário encontrar as razões para essa estranha sensação de vivermos um tempo crepuscular. A injunção kantiana pressupunha grandes obstáculos e dirigia-se ao indivíduo, à audácia deste em pensar por si.
Esta audácia - que é em si mesma uma energia que alimenta o desejo de usar a luz da razão - hoje parece desnecessária. E este é o grande perigo. A ausência de obstáculos internos e a burocratização institucional do uso da razão podem minar, e de certa maneira estão a fazê-lo, o desejo de pensar por si, de arcar com a responsabilidade do uso da razão. Por isso, este é um momento de perigo, pois a institucionalização do uso da razão dá a sensação de que esse uso na vida é um dado adquirido. Não é. Por contraditório que possa parecer, o uso da razão exige audácia, a qual é a energia que alimenta a paixão pela razão. A sensação de fim que acomete o Ocidente nasce da extinção do desejo, do apagamento da paixão pelo pensar por si mesmo. Como em muitos casamentos, a extinção do desejo pode conduzir a um divórcio muito desagradável.
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