Alfredo García Revuelta - Ciudad (1987)
Ergue-se na cidade um ramo
de oliveira, a estreita faixa deixada aos peões, o odor a óleo queimado a subir
nas narinas, os semáforos a piscar enlouquecidos pelo troar feroz dos motores. Ao
longe, para lá do poente, sobem nuvens, rios de lava roubados ao mar, a face
branca e lívida de um arcanjo desenhada em cartazes de papel brilhante, pelo
sol já queimados, riscos de tinta, o pólen da primavera a ensanguentar a
calçada. O riso soletrado na punção de um poema ergue-se, instante a instante, nas
sílabas desfeitas, no metro cambado, como as botas gastas de um velho lavrador,
na rima pobre, sem tino nem talento, sem o fogo das musas ou as trevas do
desespero. Ergue-se contra a luz do dia, inimigo da vida virtuosa, inimigo do
amor, inimigo de tudo o que os homens prezam na viagem que os conduz para a
morte.
Na cidade há um ritmo
escondido, uma poesia subterrânea, no fragor motorizado das máquinas, carros
incendiados, pequenas aves de cristal coladas aos vidros, também bandeiras da
pátria, uma camisa desfraldada na janela que se fecha, garrafas de cerveja pelo
chão, beatas de cigarro em floreiras onde nada floresce. Tudo acaba, assim
começaste, e foi nesse dia que descobri para que serve, se servir é o destino,
a poesia: onde a árvore deixa de ser árvore e o rio, rio, aí começa o poema, a
raiz a dilacerar a terra, a procurar o fundo, e as sílabas a crescerem no ar, longe
dos deuses, longe dos animais, talvez uns ouvidos a escutem, nesse balbuciar do
caminho, então começa. Desce iluminada na cabeça do poeta e este trabalha,
trabalha, num operar sem fim, para que a luz não se apague e o poema, já tísico
e enfezado, não morra por falta de energia ou levado pelo ronco do anoitecer.
Onde tudo acaba, tudo
principia. Na imperfeição da aurora, abrem-se as abertas janelas, desenham-se
pedras, planeia-se do mundo um mapa. Não poreis sobre ele alheio perfume, nem
holocausto, nem oferta alguma. A mão fechada, é isso um poema, oculta-se na
linha da paisagem, no traço de um rosto, no esboço do jardim, onde buxos e
buganvílias desfalecem ao calor da tarde. Ah esse grande sacrifício onde o
mundo se extingue num ritmo, na olaria que afeiçoa o barro das palavras, na
seta túrgida que corta a linha e lhes chama verso. Loiça tão transitória é a da
palavra, a que das mãos sai. Não é um grito nem uma luz. Não é um ofício de
orvalho nem um martelo de fantasia. Não é a flecha do amor ou espada do ódio.
Não é uma viagem de sonâmbulos nem um segredo no cofre guardado. É apenas cinza
do cigarro que vagarosa, tão vagarosa, cai.
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