Antonio Tápies - Relieve gris. Nº VIII (1957)
Era tudo tão
pardo. Ruas maculadas pela poeira, cães sarnosos a rosnar a quem passava, e se
rosnavam em fúria exaltada, buracos no alcatrão, rapazes a correr, raparigas a
espreitar pelos olhos encovados, os dias mergulhados em cinza e sombra, mesmo
se solares. Era tudo tão pardo, e nas janelas, estreitas janelas rasgavam as
paredes, assomavam cabeleiras desfeitas, homens em camisola interior, gritos
pelas casas, se a névoa vinha, bandos de pássaros a caminhar para o sul, regatos
informes, se chovia. Ouvia-se rádio, telefonia diziam, uma música fanhosa decorava
os dias, estes a correr em direcção a outros e mais outros, rios de horas sem
curvas, nem sobressaltos, a não ser a doença, a morte súbita, um vidro que se
partia.
E pão ázimo, e bolos
ázimos, amassados com azeite, e coscorões ázimos, untados com azeite, tudo isso
e ainda as mãos que me afagavam a cabeça e me deixavam suspenso na ilusão de um
brilho no horizonte da noite, se caminhasse, se caminhasse sem parar, passasse
por florestas e rios, por estradas sem nome ou terras sem gente. Tudo se
resumia, na quimera que então se arvorava, a pôr os pés à estrada, e não voltar
mais a cabeça, deixar a água para sempre presa nas bilhas de barro, cântaros
lhes chamavam, o balde a apodrecer dentro do poço, os jornais velhos adormecidos
na arrecadação, as árvores carcomidas pelos insectos da tarde, e um cansaço tão
grande na sombra que curvava para a ferrugem o ferro que era a alma.
Os rapazes
sonhavam com raparigas, os seios duros, as coxas frementes, o sexo molhado, a
boca florida pela saliva que nela corria. Rapazes e raparigas, como os vejo ao
longe, também eles pardacentos, invadidos pela cinza, como se tivessem incoado
no restolho ardido da vida. Se a noite estrondeava, encolhiam-se entre lençóis,
e adormeciam com o cheiro acre da madeira ardida, e como ela ardia, entranhado
nos ossos, preso nos cabelos, cravado no escuro coração que os habitava. Não
havia, por esses dias, anjos, nem relâmpagos, apenas a escuridão depois da luz
apagada, os olhos a antecipar a morte, assim ela virá, o mundo a esvair-se, a
memória a fincar o pé. De tudo isso queria enxertar imagem no ramo vesgo do
tempo, na carcaça mórbida da memória e dizer, num murmúrio incompreensível, a
vida assim fora e calar-me.
Era tudo tão
pardo e nem dias de pão ázimo havia, nem raparigas ao sol, apenas aquelas que
nasciam despidas em calendários sonâmbulos, calendários que marcavam o lento
empardecer da vida e enfeitavam os lugares, todos os lugares, onde os homens se
juntavam para falar, e como eram tão sérios ao falar, de coisas da bola, ou da
vida, ou do mundo, como se tudo isso não fosse a mesma coisa e eles precisassem,
sem renúncia ou desespero, daquelas raparigas acaloradas, a saltar para os meus
olhos, para se cumprirem na solidão que era a deles, ou as terem por testemunho
das conversas, tão sábias conversas eles tinham nas tardes intermináveis dos
sábados.
Era tudo tão
pardo, as casas, os campos, a erva raquítica que crescia pelo Verão, as águas
do fim do Outono, os caminhos que sulcava se me perdia de mim, as vozes que
ouvia no rumorejo da tarde, alguma cobra, os cães rafeiros perdidos pela
estrada a uivar ao crepúsculo. Era tudo tão pardo, menos as noites negras, onde
brilhavam estrelas e, na sintaxe astronómica que então as regia, os meus olhos
cresciam, entre constelações, para além do mundo, para o país do silêncio, palavra
alguma ali se articulava, sem fronteiras nem rios nem mares, apenas a luz estelar
e o sussurro do vento a encher a noite de fantasmas. Riam, se os olhava e desapreciam
envoltos na capa pardacenta do tempo, da vida os levaram sem um grito sem um lamento.
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