sábado, 29 de outubro de 2016

Doutores, engenheiros e arquitectos

Francisco de Zurbarán - Un doctor en leys (1658-60)

Há duas doenças sociais em Portugal que estão amplamente associadas. A primeira é a psicose obsessiva com os títulos académicos. Tanto quando não se possui esse título - como se tem continuado a ver nos últimos dias (aqui e aqui) -, tanto quando se possui, e o titular acha de bom tom fazer anteceder o nome pelo título ou, na maioria dos casos, pelo suposto título (a confusão entre licenciado e doutor é corrente). A esta obsessão nacional com os títulos há que juntar a histeria generalizada das praxes académicas, dos rituais e indumentária que lhes estão associados. Estes eventos, tal como foram reintroduzidos nos anos 80 do século passado, significam apenas uma coisa: olhem bem para nós que somos universitários, futuros doutores. Digamos que a praxe académica é a primeira fase da doença, marcada pela ostentação histérica, que acaba na psicose obsessiva, onde o paciente já não se apercebe do seu estado e acha normal trocar o nome de registo civil pelo de doutor, engenheiro ou arquitecto.

Como explicar esta pandemia? Ela é um belo retrato do país que somos. E aquilo que somos não é de agora. É o retrato da nosso miséria social, de uma sociedade marcada pela profunda discriminação e pela inveja surda que essa discriminação foi alimentando. Uma consulta aos arquivos paroquiais do século XIX, já depois do início do liberalismo, dá-nos uma imagem nítida dos gérmenes infecciosos que suscitam a inveja social e que desaguaram nesta pandemia. Olhar para o tratamento recebido pelas pessoas nos registos de baptismo (não o baptizado, mas os seus familiares), casamento e óbito permite perceber muita coisa. A generalidade das pessoas é indicada pelo nome próprio, pois não possui outro. As mulheres muito raramente têm apelido e o mesmo se passa com um número considerável de homens. No entanto, há alguns registos, muito poucos, em que as mulheres são tratadas por Dona, possuem apelidos, e os homens por Ilustre (para o caso de ser destituído de título académico mas possuir bens que sustentassem um grande peso social), Doutor ou Bacharel. A burocracia eclesiástica apenas reproduzia uma situação social de grande indiferenciação da generalidade da população e que tinha como contrapartida a existência de um pequeno grupo diferenciado assente ou na posse da terra ou no título universitário.

Para a generalidade das famílias sem acesso à propriedade da terra, e propriedade com uma certa dimensão, ter um filho a estudar era uma impossibilidade de facto. Numa sociedade imóvel, com uma iniciativa individual quase nula, a imagem do doutor e do bacharel ganhou uma aura de distinção que substituiu os títulos de nobreza no imaginário popular e tornou-se a fonte dinamizadora da inveja social. A primeira metade do século XX poucas alterações introduziu no panorama social. Com a lenta escolarização da segunda metade do século passado e a emergência da democracia política, o modelo de distinção social disponível – agora, que a posse da terra deixara de ser particularmente atraente – era aquele que vigorava no século XIX, o título académico. Não há rapaz ou rapariga – com a excepção das elites sociais ou de famílias muito politizadas à esquerda – que não ache uma distinção o traje e as supostas tradições académicas plasmadas na praxe. Não há licenciado seja no que for que chegue a uma câmara ou uma qualquer repartição pública ou mesmo empresa privada que não queira ser tratado por doutor, engenheiro ou arquitecto. 

O drama é que tudo isto tinha valor no século XIX e não no XXI. O drama é que os nossos universitários, apesar dos graus académicos, possuem uma cultura tão paroquial quanto os seus tetravós que tinham como destino trabalhar nos campos. Pior, movem-se num ambiente cultural, o que se manifesta nas praxes, ao nível do mais rasteiro que existe. Esta cultura do doutor, que se preparou em inumeráveis bebedeiras e actividades da praxe académica, está longe, muito longe, daquilo que é necessário num mundo complexo, perigoso e exigente como aquele em que vivemos. Ser tratado por doutor, ou mesmo sê-lo, não torna ninguém mais criativo, mais dinâmico e mais capaz de rasgar novos caminhos. Vai demorar ainda muito tempo para os portugueses perceberem que esta ânsia de ostentar trajes e títulos académicos não passa de um sintoma da nossa miséria, tão claro e tão óbvio como o era, no século XIX, o facto da generalidade das pessoas não possuir apelido e ter como destino o trabalho braçal.

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