Francisco de Zurbarán - Un doctor en leys (1658-60)
Há duas doenças sociais em Portugal que estão amplamente associadas. A
primeira é a psicose obsessiva com os títulos académicos. Tanto quando não se possui
esse título - como se tem continuado a ver nos últimos dias (aqui
e aqui) -, tanto quando se possui, e o titular acha de bom tom fazer anteceder o nome pelo
título ou, na maioria dos casos, pelo suposto título (a confusão entre
licenciado e doutor é corrente). A esta obsessão nacional com os títulos há que
juntar a histeria generalizada das praxes académicas, dos rituais e
indumentária que lhes estão associados. Estes eventos, tal como foram
reintroduzidos nos anos 80 do século passado, significam apenas uma coisa:
olhem bem para nós que somos universitários, futuros doutores. Digamos que a
praxe académica é a primeira fase da doença, marcada pela ostentação histérica,
que acaba na psicose obsessiva, onde o paciente já não se apercebe do seu
estado e acha normal trocar o nome de registo civil pelo de doutor, engenheiro ou arquitecto.
Como explicar esta pandemia? Ela é um belo retrato do país que somos.
E aquilo que somos não é de agora. É o retrato da nosso miséria social, de uma
sociedade marcada pela profunda discriminação e pela inveja surda que essa
discriminação foi alimentando. Uma consulta aos arquivos paroquiais do século
XIX, já depois do início do liberalismo, dá-nos uma imagem nítida dos gérmenes infecciosos
que suscitam a inveja social e que desaguaram nesta pandemia. Olhar para o
tratamento recebido pelas pessoas nos registos de baptismo (não o baptizado,
mas os seus familiares), casamento e óbito permite perceber muita coisa. A
generalidade das pessoas é indicada pelo nome próprio, pois não possui outro. As mulheres muito raramente
têm apelido e o mesmo se passa com um número considerável de homens. No entanto, há alguns
registos, muito poucos, em que as mulheres são tratadas por Dona, possuem apelidos, e os homens
por Ilustre (para o caso de ser destituído de título académico mas possuir bens
que sustentassem um grande peso social), Doutor ou Bacharel. A burocracia
eclesiástica apenas reproduzia uma situação social de grande indiferenciação da
generalidade da população e que tinha como contrapartida a existência de um
pequeno grupo diferenciado assente ou na posse da terra ou no título universitário.
Para a generalidade das famílias sem acesso à propriedade da terra, e propriedade com uma certa dimensão, ter
um filho a estudar era uma impossibilidade de facto. Numa sociedade imóvel, com
uma iniciativa individual quase nula, a imagem do doutor e do bacharel ganhou uma
aura de distinção que substituiu os títulos de nobreza no imaginário popular e tornou-se a fonte dinamizadora da inveja social. A
primeira metade do século XX poucas alterações introduziu no panorama social.
Com a lenta escolarização da segunda metade do século passado e a emergência da
democracia política, o modelo de distinção social disponível – agora, que a
posse da terra deixara de ser particularmente atraente – era aquele que
vigorava no século XIX, o título académico. Não há rapaz ou rapariga – com a
excepção das elites sociais ou de famílias muito politizadas à esquerda – que não
ache uma distinção o traje e as supostas tradições académicas plasmadas na
praxe. Não há licenciado seja no que for que chegue a uma câmara ou uma qualquer
repartição pública ou mesmo empresa privada que não queira ser tratado por
doutor, engenheiro ou arquitecto.
O drama é que tudo isto tinha valor no século
XIX e não no XXI. O drama é que os nossos universitários, apesar dos graus
académicos, possuem uma cultura tão paroquial quanto os seus tetravós que
tinham como destino trabalhar nos campos. Pior, movem-se num ambiente cultural,
o que se manifesta nas praxes, ao nível do mais rasteiro que existe. Esta
cultura do doutor, que se preparou em inumeráveis bebedeiras e actividades da
praxe académica, está longe, muito longe, daquilo que é necessário num mundo complexo,
perigoso e exigente como aquele em que vivemos. Ser tratado por doutor, ou mesmo
sê-lo, não torna ninguém mais criativo, mais dinâmico e mais capaz de rasgar
novos caminhos. Vai demorar ainda muito tempo para os portugueses perceberem que esta ânsia de ostentar trajes e títulos académicos não passa de um sintoma
da nossa miséria, tão claro e tão óbvio como o era, no século XIX, o facto da
generalidade das pessoas não possuir apelido e ter como destino o trabalho braçal.
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