Hoje deixo o comentário político de lado. Falo de Elena Ferrante. Não
por causa da polémica em torno da revelação da sua identidade. Até aqui não se
sabia quem era a pessoa que escrevia os livros assinados com aquele nome.
Surgiu agora uma teoria, que se pretende fundamentada, sobre a identidade
autoral. O importante, porém, são os seus livros e não esta historieta. Refiro-me
à tetralogia napolitana (1. A Amiga Genial; 2. História do Novo Nome; 3.
História de Quem Vai e de Quem fica; 4. A História da Menina Perdida). Estes
quatro volumes trazem-nos desde o fim da segunda guerra mundial até aos tempos
recentes, a partir da história de duas amigas que cresceram num bairro pobre e periférico de Nápoles.
Pessoas da minha geração – que nasceram já bem depois do fim da
segunda guerra mundial – encontram ainda muitos pontos de contacto entre as
histórias de vida narradas e as situações descritas nos livros e a realidade
portuguesa. Falando de italianos, a autora fala da Europa do sul. É verdade que
não temos fenómenos como a Camorra, nem o terrorismo em Portugal, com as FP 25
de Abril, alcançou os contornos do terrorismo italiano, como o praticado pelas
Brigadas Vermelhas ou por organizações fascistas. A vida social, porém, tem
muitos pontos em comum com a nossa. A pobreza dos bairros periféricos, mas
também os amores e desamores daquelas gerações, a ascensão social e a queda,
até o domínio que as elites – mesmo as de esquerda – impõem sobre os que vêm
debaixo. Tudo isto, bem como certos ambientes descritos, poderia passar-se em
Portugal.
Recomendo vivamente a leitura destas quatro obras. Não apenas pelo
escrita brilhante da autora, mas porque elas permitem-nos reflectir sobre nós
próprios, sobre a nossa sociedade. Com uma vantagem. Como os romances estão
situados noutro lugar, sentimos menos a necessidade de tomar uma posição
imediata sobre o que eles nos dizem. A sua leitura, para além do grande prazer
que proporciona (o leitor sente-se obrigado a não parar) faz-nos pensar, cria
um distanciamento que nos permite meditar sobre o que lemos e, depois,
descobrir que, em muitos aspectos, também somos assim. Para o bem e para o mal.
Eu sei que todos temos mais que fazer, mas ler a grande literatura (e não o
lixo que se publica todos os dias) não é apenas uma questão de cultura. É uma
questão, volto a referir, de prazer. E não há felicidade sem os grandes e os
pequenos prazeres. Elena Ferrante tem o poder, através do romance, de gerar um
prazer enorme nos seus leitores.
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