quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Ernst Jünger, Heliópolis

O romance Heliópolis (1949), de Ernst Jünger, não foi até hoje traduzido para português europeu, embora exista tradução brasileira. Há também traduções em línguas acessíveis como o espanhol, o francês e o inglês. O título pode ser lido como uma referência, embora irónica, à obra utópica de Tommaso Campanella, A Cidade do Sol (1602), na qual se desenha uma sociedade comunista liderada por sacerdotes. Na realidade, Heliópolis é uma organização política que está longe de preencher os requisitos de perfeição e felicidade presentes nas utopias. Pelo contrário, fica na fronteira entre um mundo de ficção científica e uma distopia, como aquelas que foram criadas por Aldous Huxley e George Orwell. No entanto, se se tomar literalmente a palavra utopia – como um não lugar ou um lugar que não existe – Heliópolis é uma utopia, pois o espaço da acção, apesar de algumas referências ao mundo conhecido, é uma criação ficcional. Aliás, todo o romance põe em jogo uma geografia inexistente. O próprio tempo da narrativa é num futuro indeterminado.

O que está em jogo, porém, é a desenvolvimento espiritual da personagem principal, o comandante Lucius de Geer, a superação do seu compromisso com a acção política e o poder e a ascensão a novas concepções de poder e a novas formas de vida espiritual. Após uma guerra decisiva, de âmbito mundial, o vencedor, apenas referido como regente, que estabelecera uma ordem monárquica mundial, retira-se do palco político, desiludido por as suas concepções políticas não encontrarem eco na humanidade. Dá a si mesmo uma espécie de exílio no espaço, par onde se retirou com todo o armamento de grande alcance, e de onde vigia a Terra, mas sem intervir nos negócios políticos dos estados. É possível que esta figura de um regente do mundo exilado num espaço inacessível ao comum dos mortais seja um eco das considerações feitas por René Guénon, num livro publicado em 1927, Le Roi du Monde. O romance desenvolve-se nesta clareira aberta pela retirada do regente, que permitiu a emergência de vários estados na Terra, entre os quais o de Heliópolis.

Heliópolis vive uma estranha situação política marcada por dois pólos de poder. Por um lado, o Procônsul, por outro, o Perfeito. Como o poder real, o do Regente, não intervém, estes dois poderes entregam-se a um difícil jogo de equilíbrios, com ataques e conciliações, exercícios diplomáticos e planos para aniquilar a outra parte. Existe uma divisão de poderes, mas não a tradicional divisão nascida com a modernidade. O Procônsul domina os militares e a universidade. O Prefeito, a polícia, a imprensa e um estranho Instituo de Toxicologia. Domina também a ira popular que instiga, sempre que dá jeito, contra uma minoria conhecida como parsis, os quais são submetidos não poucas vezes a violentos pogroms. O confronto real é, todavia, mais do que político, espiritual. O Procônsul representa as forças de uma velha aristocracia política, militar e espiritual, forças que crêem na liberdade dos homens, entendida, antes de mais, como livre-arbítrio. O Prefeito, um hábil populista amado pelas massas, encabeça os que têm uma visão técnica do mundo, os que se servem da ciência apenas como ponto de partida para aumentar o poder tecnológico, tido como uma forma de dominação da natureza e da sociedade. Em resumo, uma visão determinista e mecânica do homem e do mundo. Não será deslocado ver no Perfeito e nas suas forças um retrato da essência do nazismo. Desde o poder sedutor do chefe até à perseguição dos parsis, uma etnia fictícia que encarna no romance o destino dos judeus, até ao culto do poder da técnica, tudo parece ser um retrato do nazismo.

O comandante Lucius de Geer pertence às forças do Procônsul. É um alto quadro militar e diplomático, um homem de acção. O romance gira em torno do seu desenvolvimento espiritual, da sua inquietude perante os limites da acção e da sua busca por uma outra ordem que ultrapasse os quadros da velha tradição aristocrática. Constata que os métodos do seu próprio lado acabam por se degradar, perder a tensão espiritual que deveriam encarnar e aproximam-se, perigosamente, dos do lado do Perfeito, isto é, tornam-se meramente técnicos. Subjacente a estas apreciações, estão em conflito duas formas de ver a guerra e a própria acção. Por um lado, uma visão de que a guerra é uma espécie de iniciação espiritual, uma idealização das visões da guerra pré-moderna, na qual o guerreiro, tal como o contemplativo na oração e meditação, transcende a sua singularidade empírica. Por outro, a guerra como mera técnica, na qual o uso da tecnologia abole qualquer experiência espiritual, qualquer valor heróico, resumindo-se a guerra à gestão de homens e tecnologias e à contabilidade de mortos, de vitórias e derrotas. É o sentimento que o seu próprio lado se afasta da tradição aristocrática idealizada que abre no espírito do comandante à dúvida e a comportamentos que o conduzirão à queda dentro da hierarquia do Procônsul.

A dúvida e a queda são mediadas não apenas pelas reflexões do próprio comandante, mas também pela influência de um padre católico, padre Félix, um eremita que vive na montanha, cuidando de um apiário. O religioso é um dos mediadores da transformação espiritual de Lucius, assim como Budur Peri, uma jovem mulher, de origem parsi e norueguesa, também ela vítima das perseguições do Perfeito e das massas ignaras. Budur, devido às suas ligações com um tio, tem acesso a certas substâncias psicotrópicas. Num dos episódios, a noite do laurel, ambos se entregam a uma experiência com ópio, a qual será um momento decisivo de aproximação entre eles e que abrirá o caminho para seu casamento. A queda do comandante por um comportamento inadequado numa acção militar, que conduziu de forma vitoriosa e corajosa, é o momento em que ele abandona o caminho do velho aristocrata e se vai abrir a uma nova espiritualidade que o levará para a proximidade do Regente, o qual há-de voltar um dia para restabelecer a ordem no mundo, isto é, no seu reino. A queda, e quase todo o romance é a descrição daquilo que conduz Lucius à queda, foi a condição necessária da ascensão a uma outra dimensão da realidade e a outras experiências do espírito. Uma replicação romanesca da queda adâmica, a qual foi a condição necessária para a vinda da salvação crística.

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