Darío Villalba, Caída, 1992 |
Falar não é apenas falar. Todo o acto de fala é uma acção, tal como ensinaram os filósofos John Austin e John Searle. Quando se diz um conjunto de palavras (acto locutivo), fazem-se coisas com elas (actos ilocutivos) e espera-se que tenha algum efeito sobre o auditor (actos perlocutivos). Tudo isto vem a propósito da forma soez como o candidato presidencial André Ventura se referiu aos seus concorrentes e em, com particular agressividade, a Jerónimo de Sousa, que nem é concorrente (ver aqui). As palavras de Ventura não visaram as ideias políticas dos seus adversários. Visaram as suas pessoas, com especial agressividade para com o secretário-geral do PCP. Pretenderam mostrá-las como indignas, como não merecendo o respeito que qualquer ser humano deve merecer. Estas acções ilocutivas (desvalorização da dignidade dos visados) pretendem ter efeitos perlocutivos. Quais?
Desumanizar aqueles que são alvos do chiste. Fazer com que os outros não os considerem como pessoas dignas de respeito pela sua humanidade. Jerónimo de Sousa nem dos netos mereceria paciência. Esta é uma estratégia velha do extremismo político, transformar os adversários em coisas. As coisas não têm direito à palavra e podem sofrer todos os arbítrios, pois foi-lhes retirada a dignidade. Não se trata de uma simples brincadeira, não se trata de liberdade de expressão. Trata-se de aniquilar, simbolicamente, os outros. Este tipo de comportamento linguístico visa desarticular as instituições políticas e abrir o caminho para regimes autoritários. Divide o espectro político entre os amigos (as pessoas de bem) e os inimigos, que não passam de meras coisas que há que destruir.
Portugal, até ao advento de Ventura no panorama político, tinha uma vida política perfeitamente civilizada. A conflitualidade política era, por norma, centrada em questões políticas. Depois dos tempos quentes da transição à democracia, os portugueses encontraram maneira de conviverem entre si independentemente das suas ideias políticas. Foram décadas de divergência e conflito civilizados, nunca se chegando a este tipo de coisas. Que haja portugueses que não sintam repugnância por este tipo de linguagem é desagradável. Que haja portugueses dispostos a entrar no caminho aberto por Ventura é motivo de grande preocupação. Trata-se não apenas da destruição das nossas instituições democráticas, mas de um perigo para a vida civilizada, onde, apesar de divergirmos, não temos de nos ofender uns aos outros, onde não temos de ver no adversário político um inimigo que há que retirar a voz e o poder de agir. Se há pessoas que riem com as palavras de Ventura, elas não têm graça nenhuma e são muito perigosas. Falar não é apenas falar.
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