domingo, 31 de janeiro de 2021

Beatitudes (38) O som das palavras

Herbert List, Statue and Temple of Apollo in the background,
Corinth, Peloponnese, Greece,
1937
A vida feliz associa-se aos acontecimentos propícios ou a realizações que confirmam o valor daquele que as realiza. Raramente se dá atenção ao quanto a sonoridade de uma palavra pode ter em si um princípio de felicidade. Dizer Corinto ou Peloponeso é acordar uma memória tão antiga, tão perdida na penumbra do tempo, que um sentimento de felicidade nasce no coração, pois foi tocada uma corda que nos faz recordar a velha casa onde aquilo que somos nasceu.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Descrições fenomenológicas 63. O bosque dos sortilégios

Gustavo Torner, Galicia, 1957

De súbito, o silêncio tomou conta do bosque. O vento suspendeu a corrida infinita que o anima, os pássaros calaram-se escondidos nas ramagens das grandes árvores, os rumores dissolveram-se no húmus da terra negra. A paisagem era então uma enorme tela pintada de verde e silêncio, cortada pela antracite de rochas abauladas, que ao erguerem-se do chão, desenham esferas cobertas, aqui e ali, por um musgo ancestral. Entre o arvoredo há caminhos de terra batida, onde as folhas mortas jazem à espera que o vento as sopre e as arraste para as pequenas clareiras, onde ao adormecer trarão nova vida à terra. Ao longe, uma mulher caminha solitária. Desloca-se como se não quisesse quebrar o sortilégio e acordar a natureza sonâmbula que a envolve. Os pés poisam com cuidado, e quando ergue a máquina fotográfica e dispara, fá-lo como se fosse imponderável e das suas mãos nenhum ruído pudesse vir perturbar essa hora em que o mundo se recolhe dentro de si. No céu azul, algumas nuvens lembram antigas caravelas e navegam silentes, uma armada em busca das grandes aventuras que o prometido Oriente lhe trará. A mulher sobe uma escada de pedra. O corpo ergue-se de degrau em degrau. Por vezes, pára. Põem as mãos sobre os olhos e contempla o sossego que se expande até ao horizonte. Respira fundo, e recomeça a subida. Espera-a, ainda longe, um marco geodésico e dali há-de fazer as melhores fotografias, aquelas que esperam o seu talento para que venham à vida. O sol cobre-se nas nuvens que demandam as Índias e a mulher é tomada por uma pressa incompreensível. Um pé num degrau, logo outro no seguinte, como se uma força irresistível a impelisse ou um compromisso inadiável a esperasse. Sobe, rapidamente e do movimento do seu corpo solta-se uma pequena aragem. Uma sombra toca os ramos das árvores. O vento desaba da montanha, os cabelos da mulher eriçam-se, as saias enfunadas deixam ver as pernas, enquanto o canto dos pássaros cobre o verde do bosque com uma música de água e luz.
 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Hermann Ungar, Os Mutilados

Hermann Ungar (1893 – 1929) foi um escritor checoslovaco, de origem judaica e que escreveu em alemão. Os Mutilados (1923) é o primeiro dos seus dois romances. Ungar faz parte de um grupo de escritores judeus checos organizado em torno da figura de Max Brod e do qual também fez parte Franz Kafka. A morte prematura do escritor e a natureza tensa e obsessiva das suas obras, bem como a acção de algumas pessoas influentes nos meios literários, como o próprio Brod e Willy Haas, terão conduzido ao esquecimento da sua obra durante largas décadas. Isto, apesar da grande admiração de Thomas Mann – padrinho do filho de Ungar – e da obra Os Mutilados ter tido a honra de ser uma das primeiras a ser queimada pelos nazis, como exemplo de arte degenerada. Influenciado pelo expressionismo alemão e pela psicanálise, o romance é uma descida ao inferno, isto é, às obsessões e nevroses que habitam as pessoas e as mutilam.

Se se entender por mutilação a amputação de um membro, então apenas uma das personagens, Karl Fanta, é verdadeiramente um mutilado. Isto, porém, contraria o plural presente no título do romance. Todavia todas as cinco personagens em torno das quais gira a intriga – Franz Polzer, Klara Porges, Karl e Dora Fanta e o enfermeiro Sonntag – são, todas elas, de uma maneira ou de outra, mutiladas. A personagem central, Franz Polzer, é mutilada espiritualmente. A morte prematura da mãe, a vida numa casa pobre onde o pai, um pequeno merceeiro de província, e a irmã deste exerciam sobre ele uma violência contínua, assim como a suspeita de que o pai e a tia se entregavam a uma relação incestuosa, tudo isso criou em Polzer o temor não apenas pelo sexo feminino como pela espontaneidade da vida, com as suas incertezas e as suas ameaças. Estas são interiorizadas como um caos, ao qual ele deveria fugir, através de uma vida regulada até aos ínfimos pormenores.

Quando o romance começa, Polzer é empregado num banco há dezassete anos, desde precisamente os 20. Amigo de infância de Karl Fanta, o filho de um rico judeu, acompanha este para a universidade, por generosidade do pai de Karl. Quando este, porém, fica doente e tem de abandonar os estudos, o velho Fanta cessa o apoio a Franz, empregando-o num banco. A vida de pequeno funcionário burocrático ganhou aí todo o sentido, através da organização meticulosa tanto dos horários – nunca faltou ao emprego, nunca chegou tarde – como do próprio trabalho que tem de desempenhar. O que mais teme este homem sem qualidades é o desconcerto desta realidade. O seu principal desiderato é manter-se invisível na rotina da grande organização. Vive num quarto alugado em casa de uma viúva, Klara Porges. É o único hóspede de uma mulher sexualmente demasiado activa e que acabaria por violá-lo, por lhe impor uma sexualidade que ele queria a todo o custo evitar. A sua fraqueza psicológica reflecte-se na sua incapacidade de resistir pela força ao desejo vulcânico da viúva. No entanto, não é apenas a imposição física da mulher que o dobra. A certa altura, Klara espanca-o com um cinto, numa cena de sadomasoquismo que remete para e experiência infantil de Polzer, quando era sovado pelo pai ou mesmo pela tia. A rejeição do sexo feminino funde-se na complacência para com a dominação e a submissão que, desde muito cedo, se inscreveram no seu inconsciente.

uturar-se – a partir do momento em que a sua amante forçada lhe destrói a imagem de um santo, a única herança da mãe, e que ele tinha como o ponto no mundo de onde a ordem emanava – ele retoma relação com o seu amigo de infância, pelo qual terá sentido uma atracção homoerótica, assim como acontecerá pelo filho adolescente deste, Franz Fanta. Karl Fanta, devido a uma terrível doença, fora amputado das duas pernas e prepara-se para ser amputado de um braço. A sua condição existencial leva-o para um universo de suspeições acerca da vida da mulher, Dora, e das suas supostas intenções de o matar. Karl impõe uma relação de sujeição e arbítrio à mulher e tudo o que ela faça, seja tratar-lhe das feridas purulentas, seja ceder aos seus caprichos sexuais, apenas serve para confirmar a convicção de Karl de que a mulher conspira continuamente contra ele. A vida de ambos é um inferno, a dele porque a amputação física lhe destrói o discernimento e a razão, a dela porque sofre o exercício de um poder despótico a que não pode resistir.

Comportamentos obsessivos e neuróticos misturam-se com sexualidades pervertidas pela vida. Esta surge como o lugar onde não existe livre-arbítrio, capacidade para os agentes escolherem. Polzer não escolheu aquele pai e aquela tia que o maltrataram, nem sequer escolheu a viúva para amante. Tudo se lhe impôs. Também o rico Karl Fanta não escolheu a doença que o corrói. Os Mutilados é também um romance sobre a retracção do espaço de liberdade na vida dos homens. O essencial das suas existências não resulta de escolhas livres, mas consiste em coisas que lhes acontecem, como acontece uma trovoada ou um tsunami. É nesta ambiência que emerge ainda uma quinta personagem fundamental, o enfermeiro Sonntag, contratado para cuidar continuamente de Fanta. Antigo magarefe que não suportava a profissão, torna-se enfermeiro ao mesmo tempo que se converte a uma visão radicalizada do cristianismo, tomando a vida como o lugar de uma expiação contínua. A expiação resulta de uma revivescência incessante – uma revivescência obsessiva – dos actos pecaminosos, numa inversão da proibição bíblica de olhar para trás dada à família de Loth.

Se o que acontece com Karl Fanta e Franz Polzer não resulta de escolhas livres, se o mesmo se passa com Dora e a própria Klara Porges, que não escolheu ficar viúva nem sequer a sexualidade com que é dotada, uma possibilidade de introduzir a religião seria a de vincar o seu carácter emancipatório, a sua luta contra a submissão que o pecado impõe aos homens. Libertar os quatro do passado, fazer com que eles não se transformem estátuas de sal, tal como aconteceu à mulher de Loth. A intromissão da religiosidade pervertida de Sonntag é, claramente, a negação dessa possibilidade. O retorno contínuo da consciência ao passado, ao mal como forma de expiação. Isso significa, porém, que o expiador nunca encontrará o alívio da sua consciência, como se a remissão do mal fosse impossível. A mutilação emerge assim como o acontecimento em que o mal triunfa irremissivelmente sobre o bem e a vida é o inferno, esse lugar de expiação infinita. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A Garrafa Vazia 42

Paul Klee, Eros, 1923
Deixe-se de lado
a lascívia.
Não há no mundo
coisa mais bem
distribuída
que os epitáfios
do desejo.

Belos os túmulos
de pedra,
onde o tempo
sepultou
os ardores de Eros
entre as heras
secas de um bocejo.

Dezembro de 2020

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Alma Pátria 68: Artur Ribeiro, Sete Saias


A cançoneta Sete Saias, gravada em 1960, é um dos maiores êxitos de Artur Ribeiro. O poema é aparentemente despretensioso e inócuo. No entanto, ele não deixa de ser um belo retrato da alma pátria da altura, em que o professor Salazar pastoreava a nação. Uma temática ruralista e moralizante ainda incendiava o gosto musical dos portugueses. A canção pode ser entendida quase como de intervenção, não no sentido a que posteriormente se deu a esse epíteto, mas como qualificação da sua pretensão pedagógica. O que está em jogo é saber lidar com Eros, esse deus travesso, libidinoso e inquietante. Nada de saias com grandes rodas, nada de saias curta, o mais que podem subir, em 1960, é um palmo acima do pé, não vá o Zé ficar com ideias. Puro influxo catequético do Estado Novo, numa paisagem que dava os primeiros e tímidos passos na sua dissolução.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Simulacros e simulações (10)

André Kertész, Fork, Paris, 1928

Primeiro nasceu a sombra do garfo, depois, de simulação em simulação, o simulacro foi ganhando corpo, densidade, contornos, até que veio alguém que pegou nele, o sopesou, o olhou demoradamente e com ele matou a fome.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Nocturnos 48

Edvard Munch, Winter Night, 1900

O Inverno envolve-se numa capa de luz e neve. O frio cresce-lhe por dentro e congela a seiva das árvores adormecidas. Na floresta, ouve-se a noite latir, enquanto os lobos uivam na planície árida do silêncio.

domingo, 24 de janeiro de 2021

Perfis 13. A mulher abandonada

Deborah Turbeville, Clothes by Romeo Gigli, Mirabella Magazine, 1989
A mulher abandonada entrega-se comovida ao seu abandono. Este nasce-lhe dentro do coração e transpira lentamente pelos poros, como se fora uma alma exausta, cansada da prisão do corpo. Inclina a cabeça para terra. Dos olhos, desprende-se o plácido rio da solidão. Com ele faz um vestido de água e seda, e logo vela o corpo para que olhos vindos ao acaso se interroguem sobre forma e beleza. No abandono, a mulher encontra um lugar de onde se soltam perguntas que desabam sobre a mudez e lhe inclinam o olhar para a grande avenida da tristeza. À sua volta cresce a ruína. O tecto desfaz-se em poeira policromada, as madeiras de portas e janelas são pasto de rebanhos de carunchos, os vidros esperam, na sujidade acumulada pela passagem dos anos, a pedra dura que os estilhaçará, fazendo-os cair no chão, para que se oiça o som que se solta desse encontro amargo e fortuito entre o vidro e os azulejos. Alguém pensará então ouvir o repicar frenético de um pequeno sino, mas a mulher abandonada permanecerá suspensa na sua dor, imaginando-se uma estátua confiscada à vida e tornada pedra e eternidade. Então, oferece-se, pura e inconsolável, à plenitude da contemplação. Intocável, entrega a sua imagem à avidez dos contempladores. Eles olham-na e não vêem abandono, tristeza, solidão, nem as sombras da alma no enigma do rosto, apenas os requebros do corpo, a cintilação das roupas. Tomada por uma melancolia invencível, ela começa a descer dentro de si, afunda-se mais e mais até ouvir o rumorejar da terra, a lava incandescente que se esconde no magma, cujo calor a toca ao de leve e a abre, com lentidão não dissimulada, para o arrebatamento da vida, desse lugar em que o abandono ainda é um sinal de contradição perante o império da morte.

sábado, 23 de janeiro de 2021

A Garrafa Vazia 41

Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985
Deslizo pelo tempo
em turbilhão
de óleo e terbentina.

Sou um rio inflamado
sem sonhos
sem quimeras.

Deixo o corpo exposto
na escarpa
escura do medo.

Dezembro de 2020

 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Os velhos e os fracos

É plausível afirmar que o corpo político, ao contrário do que aconteceu na primeira vaga da pandemia, não tem estado feliz na actual situação. Refiro-me ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e aos dirigentes das várias oposições. Todos eles não viram, ou não quiseram ver, que os portugueses, passado o medo inicial, iriam complicar a realidade e tomar o vírus como coisa sem importância. Não sei, todavia, se os esforços conjuntos de Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Rui Rio, como principal líder da oposição, mesmo sem os sinais contraditórios dados, seriam suficientes para impor aos portugueses, de forma mais musculada, outro tipo de comportamentos.

Há um problema que perpassa na forma como parte da população passou a lidar com o assunto. O vírus não é tão mortal como dizem. Mata alguns velhos e, entre os mais novos, só é problemático para os que sofrem de algumas doenças, isto é, os mais fracos. É isto que, apesar de falso e imoral, está na cabeça de muita gente, que acha que o determinado pelo poder político é apenas facultativo e um embaraço que não se deve tomar em consideração. Trata-se de uma forma de selecção natural e, por isso, justa. Eu que estou no vigor da vida – pensam – não tenho de ser cerceado nos direitos por causa de velhos e fracos. Tenho direito de facto, mesmo que contrarie a lei, a fazer o Natal e a passagem de ano como bem me aprouver, assim como conduzir a vida como entender. Mesmo que estas ideias não tivessem sido formuladas explicitamente por muitos dos que infringiram recomendações e leis, elas estavam lá a soprar-lhes aos ouvidos.

Isto mostra como faliram nas sociedades contemporâneas conceitos como de próximo ou de dever para com os outros. A secularização da sociedade portuguesa, composta em grande parte por católicos não praticantes, conduziu a que se deixasse de ter disponível a ideia de amor ao próximo como guia dos comportamentos. Por outro lado, a ideia de dever para com o outro, uma forma laica de impor uma moral do respeito, não encontrou espaço para florescer, num ambiente marcado pela cultura do eu e dos seus interesses e prazeres. Ora quando nem a religião nem a moral são suficientes para que os indivíduos percebam o dano que condutas irresponsáveis provocam, só resta a violência legítima dos representantes do soberano, que em democracia é o povo. É para isso que serve, em primeiro lugar, o poder político, tornar a comunidade, segundo as regras do Estado de direito, um espaço seguro para todos, incluindo velhos e fracos. E isto tem falhado.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Ensaio sobre a luz (89)

Peder Mørk Mønsted, Crows in Winter, 1902
A luz de Inverno desliza lenta do céu e flameja de branco a brancura da neve. Perdidos, os corvos deambulam ao frio, esquecidos da sua condição, incapazes de se erguer da terra, inquietos como se não soubessem encontrar o secreto poder que os eleva do chão.
 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Ernst Jünger, Heliópolis

O romance Heliópolis (1949), de Ernst Jünger, não foi até hoje traduzido para português europeu, embora exista tradução brasileira. Há também traduções em línguas acessíveis como o espanhol, o francês e o inglês. O título pode ser lido como uma referência, embora irónica, à obra utópica de Tommaso Campanella, A Cidade do Sol (1602), na qual se desenha uma sociedade comunista liderada por sacerdotes. Na realidade, Heliópolis é uma organização política que está longe de preencher os requisitos de perfeição e felicidade presentes nas utopias. Pelo contrário, fica na fronteira entre um mundo de ficção científica e uma distopia, como aquelas que foram criadas por Aldous Huxley e George Orwell. No entanto, se se tomar literalmente a palavra utopia – como um não lugar ou um lugar que não existe – Heliópolis é uma utopia, pois o espaço da acção, apesar de algumas referências ao mundo conhecido, é uma criação ficcional. Aliás, todo o romance põe em jogo uma geografia inexistente. O próprio tempo da narrativa é num futuro indeterminado.

O que está em jogo, porém, é a desenvolvimento espiritual da personagem principal, o comandante Lucius de Geer, a superação do seu compromisso com a acção política e o poder e a ascensão a novas concepções de poder e a novas formas de vida espiritual. Após uma guerra decisiva, de âmbito mundial, o vencedor, apenas referido como regente, que estabelecera uma ordem monárquica mundial, retira-se do palco político, desiludido por as suas concepções políticas não encontrarem eco na humanidade. Dá a si mesmo uma espécie de exílio no espaço, par onde se retirou com todo o armamento de grande alcance, e de onde vigia a Terra, mas sem intervir nos negócios políticos dos estados. É possível que esta figura de um regente do mundo exilado num espaço inacessível ao comum dos mortais seja um eco das considerações feitas por René Guénon, num livro publicado em 1927, Le Roi du Monde. O romance desenvolve-se nesta clareira aberta pela retirada do regente, que permitiu a emergência de vários estados na Terra, entre os quais o de Heliópolis.

Heliópolis vive uma estranha situação política marcada por dois pólos de poder. Por um lado, o Procônsul, por outro, o Perfeito. Como o poder real, o do Regente, não intervém, estes dois poderes entregam-se a um difícil jogo de equilíbrios, com ataques e conciliações, exercícios diplomáticos e planos para aniquilar a outra parte. Existe uma divisão de poderes, mas não a tradicional divisão nascida com a modernidade. O Procônsul domina os militares e a universidade. O Prefeito, a polícia, a imprensa e um estranho Instituo de Toxicologia. Domina também a ira popular que instiga, sempre que dá jeito, contra uma minoria conhecida como parsis, os quais são submetidos não poucas vezes a violentos pogroms. O confronto real é, todavia, mais do que político, espiritual. O Procônsul representa as forças de uma velha aristocracia política, militar e espiritual, forças que crêem na liberdade dos homens, entendida, antes de mais, como livre-arbítrio. O Prefeito, um hábil populista amado pelas massas, encabeça os que têm uma visão técnica do mundo, os que se servem da ciência apenas como ponto de partida para aumentar o poder tecnológico, tido como uma forma de dominação da natureza e da sociedade. Em resumo, uma visão determinista e mecânica do homem e do mundo. Não será deslocado ver no Perfeito e nas suas forças um retrato da essência do nazismo. Desde o poder sedutor do chefe até à perseguição dos parsis, uma etnia fictícia que encarna no romance o destino dos judeus, até ao culto do poder da técnica, tudo parece ser um retrato do nazismo.

O comandante Lucius de Geer pertence às forças do Procônsul. É um alto quadro militar e diplomático, um homem de acção. O romance gira em torno do seu desenvolvimento espiritual, da sua inquietude perante os limites da acção e da sua busca por uma outra ordem que ultrapasse os quadros da velha tradição aristocrática. Constata que os métodos do seu próprio lado acabam por se degradar, perder a tensão espiritual que deveriam encarnar e aproximam-se, perigosamente, dos do lado do Perfeito, isto é, tornam-se meramente técnicos. Subjacente a estas apreciações, estão em conflito duas formas de ver a guerra e a própria acção. Por um lado, uma visão de que a guerra é uma espécie de iniciação espiritual, uma idealização das visões da guerra pré-moderna, na qual o guerreiro, tal como o contemplativo na oração e meditação, transcende a sua singularidade empírica. Por outro, a guerra como mera técnica, na qual o uso da tecnologia abole qualquer experiência espiritual, qualquer valor heróico, resumindo-se a guerra à gestão de homens e tecnologias e à contabilidade de mortos, de vitórias e derrotas. É o sentimento que o seu próprio lado se afasta da tradição aristocrática idealizada que abre no espírito do comandante à dúvida e a comportamentos que o conduzirão à queda dentro da hierarquia do Procônsul.

A dúvida e a queda são mediadas não apenas pelas reflexões do próprio comandante, mas também pela influência de um padre católico, padre Félix, um eremita que vive na montanha, cuidando de um apiário. O religioso é um dos mediadores da transformação espiritual de Lucius, assim como Budur Peri, uma jovem mulher, de origem parsi e norueguesa, também ela vítima das perseguições do Perfeito e das massas ignaras. Budur, devido às suas ligações com um tio, tem acesso a certas substâncias psicotrópicas. Num dos episódios, a noite do laurel, ambos se entregam a uma experiência com ópio, a qual será um momento decisivo de aproximação entre eles e que abrirá o caminho para seu casamento. A queda do comandante por um comportamento inadequado numa acção militar, que conduziu de forma vitoriosa e corajosa, é o momento em que ele abandona o caminho do velho aristocrata e se vai abrir a uma nova espiritualidade que o levará para a proximidade do Regente, o qual há-de voltar um dia para restabelecer a ordem no mundo, isto é, no seu reino. A queda, e quase todo o romance é a descrição daquilo que conduz Lucius à queda, foi a condição necessária da ascensão a uma outra dimensão da realidade e a outras experiências do espírito. Uma replicação romanesca da queda adâmica, a qual foi a condição necessária para a vinda da salvação crística.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Simulacros e simulações (9)

Ricardo da Cruz-Filipe, Questions du Réel, 1976

Toda a realidade começar por se apresentar como simulação daquele que está perante ela. Depois, como simulacro que se deixa ver. Por fim, como uma mancha heteróclita, na qual os objectos ganham contorno, se raptam do cativeiro das aparências e se apresentam na sua inquietante estranheza. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A Garrafa Vazia 40

Juán José Vera, Suburbio, 1963
Vivo no subúrbio
do subúrbio,
na casa estripada
pelo tamborilar
dos rodízios do tempo.

Vivo à beira do bordel,
em que putas
delicadas
vendem broches
a preços de promoção.

Vivo numa rua
esquecida
onde se arrastam
náufragos
de mil oceanos.

Vivo no rugir da ruína
entre os vespeiros
da tarde
e um punhal
cravado no coração.

Dezembro de 2020

domingo, 17 de janeiro de 2021

Nocturnos 47

Sebastian Pether (atribuído), Moonlit river landscape with a ruined priory

Como um romântico cansado das luzes, há que construir paisagens nocturnas e descer ao que há de mais negro em si. Então, encontra-se a pálida luz lunar para que se possa ver, numa paisagem assombrada, árvores exaustas, as águas gélidas do rio da morte e a ruína em que o tempo transformou a vida.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Beatitudes (37) Junto ao mar

Caspar David Friedrich, Monk by the Sea, 1809

A vida não será mais do que um longo passeio solitário junto ao mar. A areia recorda ao caminhante a sua verdadeira natureza, uma grão perdido entre incontáveis grãos. O marulhar das águas ecoa a música do universo, de que ele faz parte e que o transcende irremissivelmente. A solidão revela-lhe a sua condição no mundo, onde tudo o que é essencial se joga na singularidade daquilo que se é.  E a isto se resumem todas as bem-aventuranças nesta terra.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A coluna infame

Francisco de Goya, Esto es malo, edição de 1863

Na introdução do seu livro História da Coluna Infame, Alessandro Manzoni escreve: Parece-nos ver a natureza humana empurrada irremissivelmente para o mal por razões que escapam ao seu arbítrio, como dominada por um sonho perverso e veemente de que não se pode libertar, de que nem sequer adverte a sua existência. Embora a história da coluna infame não seja especificamente um caso de loucura política, mas da submissão de pessoas racionais - juízes - à pulsão enlouquecida das massas, que levou, no século XVII, à condenação e a uma pena brutal de pessoas que não podiam ter feito o crime de que lhes era atribuído, a propagação da peste através de uma matéria untuosa. Isso que exigiria um sofisticado laboratório que, na prática, só o século XX conseguiria produzir. Os juízes tinham perfeita consciência de que o crime não era possível, mas mesmo assim seguiram a pulsão da massa ignara e supersticiosa. É essa mesma massa que se move neste momento um pouco por todo o lado. Foi ela que elegeu Trump e Bolsonaro. É ela que se começa a mover também em Portugal, acicatada pelo oportunismo de pequenos aprendizes de feiticeiro. A apreciação de Manzoni deve alertar-nos para o perigo real, para o facto dos homens serem empurrados para o mal movidos por um sonho perverso, de que não se conseguem libertar nem terem consciência da sua existência. Não se pense que isto são histórias do passados longínquo. O século XX foi pródigo em história dessas motivadas por paixões políticas. Se os homens não acordarem e interromperem o sonho perverso em que parecem deleitar-se, também teremos a nossa coluna infame no século XXI.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O perigo das palavras em política

Darío Villalba, Caída, 1992
Falar não é apenas falar. Todo o acto de fala é uma acção, tal como ensinaram os filósofos John Austin e John Searle. Quando se diz um conjunto de palavras (acto locutivo), fazem-se coisas com elas (actos ilocutivos) e espera-se que tenha algum efeito sobre o auditor (actos perlocutivos). Tudo isto vem a propósito da forma soez como o candidato presidencial André Ventura se referiu aos seus concorrentes e em, com particular agressividade, a Jerónimo de Sousa, que nem é concorrente (ver aqui). As palavras de Ventura não visaram as ideias políticas dos seus adversários. Visaram as suas pessoas, com especial agressividade para com o secretário-geral do PCP. Pretenderam mostrá-las como indignas, como não merecendo o respeito que qualquer ser humano deve merecer. Estas acções ilocutivas (desvalorização da dignidade dos visados) pretendem ter efeitos perlocutivos. Quais?

Desumanizar aqueles que são alvos do chiste. Fazer com que os outros não os considerem como pessoas dignas de respeito pela sua humanidade. Jerónimo de Sousa nem dos netos mereceria paciência. Esta é uma estratégia velha do extremismo político, transformar os adversários em coisas. As coisas não têm direito à palavra e podem sofrer todos os arbítrios, pois foi-lhes retirada a dignidade. Não se trata de uma simples brincadeira, não se trata de liberdade de expressão. Trata-se de aniquilar, simbolicamente, os outros. Este tipo de comportamento linguístico visa desarticular as instituições políticas e abrir o caminho para regimes autoritários. Divide o espectro político entre os amigos (as pessoas de bem) e os inimigos, que não passam de meras coisas que há que destruir. 

Portugal, até ao advento de Ventura no panorama político, tinha uma vida política perfeitamente civilizada. A conflitualidade política era, por norma, centrada em questões políticas. Depois dos tempos quentes da transição à democracia, os portugueses encontraram maneira de conviverem entre si independentemente das suas ideias políticas. Foram décadas de divergência e conflito civilizados, nunca se chegando a este tipo de coisas. Que haja portugueses que não sintam repugnância por este tipo de linguagem é desagradável. Que haja portugueses dispostos a entrar no caminho aberto por Ventura é motivo de grande preocupação. Trata-se não apenas da destruição das nossas instituições democráticas, mas de um perigo para a vida civilizada, onde, apesar de divergirmos, não temos de nos ofender uns aos outros, onde não temos de ver no adversário político um inimigo que há que retirar a voz e o poder de agir. Se há pessoas que riem com as palavras de Ventura, elas não têm graça nenhuma e são muito perigosas. Falar não é apenas falar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A Garrafa Vazia 39

Francisco Goya, Lluvia de Toros, 1816-23
Um coro de cabrestos
invade a praça,
deixa uma música
de submissão
às ordens
do grande touro,
o descornado
de olhos vazios
presos
ao furúnculo da morte.

Dezembro de 2020

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Simulacros e simulações (8)

Ed van der Elsken, Pour Aller Faire L’amour, Paris, 1952
Simular um mundo em que se vive de doações é um sonho que qualquer sonhador experimentado nunca esquece de reservar no seu armazém onírico. Depois, o destino decide se o sonho é uma antecipação da realidade ou um mero simulacro onde esta se mostra e logo se oculta.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A infantilização da política


Uma das características mais salientes, mas julgo que não muito sublinhada, nestes movimentos ligados ao populismo é o carácter infantil ou adolescente das personagens, sejam apoiantes ou sejam mesmo actores políticos destacados. Este vídeo de uma infeliz revolucionária do Tennessee é exemplar. A ocupação do Capitólio foi fértil em imagens de crianças com corpo de adulto. O próprio discurso de Trump - e não me refiro apenas ao que antecedeu a tomada do Capitólio, mas ao seu discurso político quotidiano - é de uma infantilidade extrema. Se olharmos para Portugal, o candidato a Trump da paróquia apresenta também as mesmas características, embora mais próximas do adolescente que discute bola com outras adolescentes de clubes diferentes. O universo de todas estas pessoas varia entre o de crianças em idade pré-escolar e adolescentes retardados, ainda com a crise hormonal por resolver. As simplificações com que entendem o mundo, as categorizações que fazem para estruturar a realidade, a forma como se relacionam com aquilo que os contraria, tudo isso denota gente de uma profunda imaturidade. Não admira que o candidato do Chega atraia tantos adolescentes. Estão na mesma onda de vibração.

Esta  infantilização da política não é da agora e não a encontramos apenas nos movimentos populistas de extrema-direita. Ela adequa-se a pessoas que vivem numa sociedade em que o desejo - o desejo de consumir, por exemplo - é continuamente estimulado, que se orientam pelo princípio de prazer, o qual, todavia, choca com a dura realidade frustradora das pulsões. Como crianças que não aprenderam a lidar com a frustração, estas pessoas - uma enorme massa - reagem como crianças e adolescentes que emocionalmente são. Fazem birra, amuam, partem os vidros do carro de quem se lhe opôs. Passam a viver em realidades alternativas, para não terem de enfrentar aquilo que as faz sofrer. São xamãs, chefes índios, cowboys, adeptos da teorias da conspiração, ávidos consumidores de mentiras, de notícias falsas, de tudo o que lhes afague o ego e os conforme nesses patamares da vida onde não se lhes cobra responsabilidade.

Note-se, todavia, que a natureza infantil e adolescentes destas massas e dos seus dirigentes oculta duas coisas. Em primeiro lugar, esconde o quão perigosas são, como se viu no assalto ao Capitólio. Crianças e adolescentes podem ser extraordinariamente agressivos e maldosos para os seus pares, fundamentalmente para os mais fracos. Oculta que por detrás de líderes infantilizados ou dos que permanecem numa adolescência retardada se move gente que não é infantil nem parou nessa adolescência. Descobriram que a infantilização da política é uma forma eficiente para atingirem os seus objectivos de dominação económica e política, de subversão das regras informais e formais da democracia e da destruição do Estado de direito, coisas cuja importância e funcionamento crianças e adolescentes não têm competência nem maturidade para perceber. 

domingo, 10 de janeiro de 2021

Nocturnos 46

Maxfield Parrish, At Close of Day, 1941
Nos dias em que o frio se transforma em neve sobre ruas e casas, o fim do dia e o começo da noite são motivos de júbilo. Fechados em casa, aquecidos pelo fogo antigo que um dia foi a protecção máxima contra os inimigos, os homens entregam-se a longos devaneios, rememorando a vida, enquanto ouvem crepitar a lenha na lareira e o tamborilar suave dos flocos nos vidros das janelas.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Uma visita à direita nacional

A sondagem da Aximage, para o DN/JN/TSF, referente ao mês de Dezembro, dá ao CDS uns miseráveis 0,3%. Os partidos também morrem e o CDS está moribundo. Teve um importante papel na transição à democracia e, também, na vida democrática institucionalizada. No início, integrou, no novo regime, muitos eleitores simpatizantes da ditadura. Fê-lo, assumindo sempre uma posição claramente democrática. Foi um parceiro importante de soluções governativas. Talvez seja há muito um cadáver adiado, que apenas o talento de Paulo Portas evitou morte mais precoce. O erro de casting da actual liderança, depois da desilusão Assunção Cristas e do aparecimento de outros partidos à direita, parece indicar que tudo vai acabar mal.

A Iniciativa Liberal (IL) está em consolidação e abre uma pequena brecha numa cultura política avessa ao liberalismo. Sem capacidade de penetrar no eleitorado popular, possui algum poder de atracção no mundo universitário e em sectores empresariais mais jovens ou com maior formação. Herdará eleitores do CDS. Se conseguir, nas próximas eleições, eleger um grupo parlamentar, abrirá o caminho para afirmar, em Portugal, uma corrente ideológica plenamente liberal, como acontece em múltiplos países europeus. Sem problemas, será parte de uma eventual solução governativa de direita.

O Chega veio dar voz ao ressentimento com a democracia. O partido advoga um liberalismo radical na economia e um conservadorismo também radical em matéria de costumes. Atrai o seu eleitorado, que na verdade não compreende o programa e as consequências que teria a sua aplicação, através da exploração histriónica de causas ao gosto popular, como o ódio aos políticos ou a certas etnias e grupos sociais. O seu principal trunfo é o seu principal problema: O Chega é André Ventura. Sem o hooliganismo político encenado pelo líder, o partido é nada. Todavia, mesmo na Europa, o hooliganismo pode ter mais força do que se pensa e degradar a vida política a níveis inimagináveis.

O PSD vive uma situação crítica. A forma de fazer política de Rui Rio não é particularmente clara, o que deixa as bases numa situação de perplexidade. Isso alimenta sonhos sebastianistas internos, como o do retorno de Passos Coelho à liderança. No entanto, esta crise – que é real – não tem nenhuma novidade. O PSD, tal como o PS, são partidos de poder. Sempre que passam para a oposição entram em crise. Chegados ao poder, a crise passa com a distribuição de lugares e o glamour que o poder ostenta. Nos partidos de poder, crise é estar fora do poder. Com ou sem Rui Rio, é apenas uma questão de tempo até a crise passar.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

A Garrafa Vazia 38

Pablo Picasso, Busto de hombre escribiendo, 1971
Não sou poeta, pois não
vivo no fio aguçado
da navalha.

Sem melancolia, uso-a,
à navalha,
para fazer a barba.

Logo, corto o pescoço
e a fina ranhura
sangra em vermelho.

Com lápis cicatrizante,
paro a escorrência
e mato o estro.

Não tivesse eu horror
ao sangue, grande
poeta haveria de ser.

Novembro de 2020

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

EUA, uma ferida narcísica

Frank Frazetta, Encabezamiento para el correo del lector de Famous Monsters of Filmland

O narcisismo norte-americano, que leva muitas vezes uma das mais velhas democracias do mundo a actos inaceitáveis, sofreu ontem um rude golpe com as imagens da invasão do Capitólio para sabotar a nomeação de um Presidente legitimamente eleito. Os EUA vangloriavam-se, com alguma razão, de serem os defensores do mundo livre e do seu governo estar sujeito às regras da democracia e do Estado de direito. Ontem, porém, uma multidão inflamada por um presidente derrotado, mas incapaz de assumir a derrota, transformou os EUA, perante todo o mundo, numa autêntica república das bananas. Nenhum respeito pela democracia, pela lei e pela ordem. Foi nisto que deu a retórica de fazer a América grande de novo. Humilhá-la pura e simplesmente.

Os Estados Unidos sempre se supuserem estar no centro do mundo democrático. Ontem, porém, perceberam que essa sua posição é muito menos sólida do que os americanos supunham. Estiveram a milímetros de se tornarem numa autocracia, submetidos ao arbítrio de um déspota. A ferida narcísica que ontem se abriu talvez não arrede os EUA do centro do mundo democrático. No entanto, ela vai sangrar e, espera-se, que conduza aos que são verdadeiros democratas – tanto no campo democrata como no republicano – a uma profunda reflexão sobre a fragilidade não apenas das instituições, mas da própria democracia. Ontem os EUA foram confrontados com a realidade, com a sua realidade. Veremos se têm capacidade de não fechar os olhos e lidar com o monstro que os habita.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Descrições fenomenológicas 62. Paisagem em azul

Esteban Vicente, Goyescas, 1983

Uma cortina de tule desce do céu sobre a terra e vela suavemente a montanha e a floresta. Nela dançam mil tonalidades de azul, como se a paisagem fosse uma enorme aguarela onde se combinam o índigo, o anil, o cobalto, a turquesa, azuis marinhos ou da Prússia, mil outros matizes, ora mais suaves, ora mais carregados. Os olhos, perplexos da harmonia em azul, levam tempo a adaptar-se ao inóspito da paisagem. Lentamente, apercebem-se da massa rochosa da montanha e descobrem sobre as suas encostas e, no planalto em que se desdobra, a floresta, com as suas grandes árvores, cujas folhas, verdes em dias de sol, se confundem na ambiência que a tudo cobre. Na terra revestida de neve refulgente, pequenas poças de água e gelo cintilam. Um lençol imaculado na sua brancura funde-se no azul que desce dos céus. Restos de arbustos secos erguem-se aqui e ali, enegrecidos pelo frio e pela morte. No centro da clareira, uma cabana com paredes de madeira, um telhado de colmo de duas águas e um alpendre, tudo coberto por uma espessa camada de neve. De uma das janelas sai uma luz que anuncia o fogo a arder na lareira. Vê-se o arfar das labaredas, a metamorfose das cores, o vermelho, o laranja e logo o amarelo, para retornar tudo ao princípio, numa dança que que traz à memória o fluxo eterno, o movimento inconstante do ser, a esperança de que a vida não tenha fim. Vindo da floresta, um corvo pousa na chaminé. O preto que o cobre ilumina-se no contaste com o branco da neve. Na cabana, alguém chega à janela. Fica parado, contempla com demora o horizonte, depois volta-se e desaparece. Os azuis fundem-se lentamente até que tudo se torna negro e a noite acrescente paz à solidão.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Beatitudes (36) Serenidade

Ulrika Victoria Åberg, Landscape in Germany, 1860

Também a serenidade tem a sua gramática, uma teoria das formas e uma sintaxe dos elementos. Depois, junta-se o léxico fabricado com o som das cores. Assim se descobre esse texto antigo em que serenos os homens percorrem campos e florestas e, mergulhados na natureza, enfrentam a dura necessidade para que o dia de amanhã ainda seja o seu dia.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Perfis 12. O actor

Ed Clark, Marlon Brando, 1949

O actor não dorme nem descansa, apenas se representa como quem está a dormir e se entrega ao descanso. A vida de actor é uma representação contínua, que nunca pode ser suspensa, que segue por uma estreita vereda rodeada por precipícios. Se o actor deixa de representar, os pés tropeçam um no outro e a queda é inevitável. Por isso, é vigilante e permanece sempre de vigília, mesmo se aparenta dormir, mesmo se sonha. Quando um sonho lhe chega, ele representa-se a sonhar e sonha-se representando. Um actor é um agente duplo, age na vida como se agisse na vida, espia-se a si como a um inimigo. Na mão, leva o seu papel. Repete-o infinitamente. Primeiro, lendo-o uma e outra vez. De seguida, soletrando-o enquanto caminha na cidade ou nos campos, se apanha um táxi, se se aventura num transporte público, se toma o elevador de um hotel. Por fim, sonhando-o enquanto no sonho se representa a dormir. Noite e dia, o actor é fiel a uma longínqua tradição. Nunca tira a máscara, pois, para ele, não há suspensão da representação. A janela que o ilumina é uma janela de luz incessante, para que o escuro não o envolva e a noite, com a sua armadura de trevas, não o derrote e o faça cair no inferno dos actores, esse lugar frio onde nenhum espectador porá os pés, nenhum sentimento de gratidão se elevará, nenhum realizador ou encenador arquitectará um mundo feito com as suas palavras e os seus gestos. A máscara é o rosto do actor e o papel a sua vida. Essa é a sua riqueza, não se distinguir da máscara e de viver o papel que lhe foi atribuído, não em cada filme ou em cada peça, mas na hora em que nasceu e sobre ele, em segredo, máscara e papel se ergueram para se lhe irem cingindo sem que ninguém, nem ele, o notasse ou quisesse.
 

domingo, 3 de janeiro de 2021

A Garrafa Vazia 37

Juan Barjola, Ambiente cerrado, 1982
Lanças o arado na areia.
Logo nascem
moribundos
matos e matagais.
Crescem regados
pelo enxofre
das águas,
adubados no ardor
da peçonha destilada
pela varejeira do vento.

Agosto de 2020
 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Nocturnos 45

Fred Herzog, Jackpot, 1961

Esses locais onde o excesso de luz anuncia as mais negras noites, esses paraísos instantâneos onde o coração se perde e o espírito caminha ébrio, esses pontos de encontro onde o vazio, o desespero, o abandono e a perda tecem as suas conjuras, todos eles fazem parte de uma geografia da queda, de onde emerge uma cartografia sempre em mudança, assinalando os pontos onde os homens se atiram da noite que passa para o precipício das trevas sem fim.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Alma Pátria 67: Carlos do Carmo, Gaivota


 

Gaivota é um fado com poema de Alexandre O'Neil e música de Alain Oulman. Foi composto para a Amália Rodrigues e pertence a um conjunto que veio a renovar o género. Esta interpretação de Carlos do Carmo pertence a um álbum de 1970. No dia em que o mais importante fadista - refiro-me aos fadistas no masculino -, ao lado de Alfredo Marceneiro, desapareceu, o Alma Pátria deixa aqui um testemunho do enorme talento de Carlos do Carmo. Não é fácil aventurar-se num fado ao qual Amália tinha dado já uma interpretação definitiva, mas Carlos do Carmo encontra o seu próprio tom e a sua interpretação é tão decisiva quanto a de Amália. Este fado, como outros onde se encontram letras de grandes poetas portugueses, anunciava já uma saída para lá da colonização que o Estado Novo tentara fazer da canção de Lisboa.