segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Leggio III

Hein Semke, Uma vista de Lisboa, 1957 (aqui)

Profícua luz com que a tarde cai.

No ruído entretecido de silêncio, há,

pela cânfora das avenidas,

vultos viandantes, aves bêbadas

poisadas na fímbria das ruas.

O deus, aos corações, dardeja

e sentado pelos bancos vê passar,

na pressa que à noite o dia deu,

raparigas fanadas de seios ligeiros,

flocos de espuma, sangue a arder.

 

Animais pelo Rossio a bramir.

Nas ruas que para o Tejo caem

avisto barcos lêvedos a minguar,

o oceano da terra os atrai.

Do chão os olhos erguem-se,

anseiam no céu o motim fecundo.

Onde os meteoros soçobram,

prendem-se astros incendiados,

luas acesas pela vertigem

na cidade em delíquio caem.

 

A inconstância a tudo toca,

e em teus dedos as paredes de cal

são planícies de cinza e carvão,

ruelas de sombra e sono,

vozes roucas se cantam.

Terríveis nuvens nos céus.

Homens sóbrios marcham,

a cegueira tão cega os alevanta.

Não há navios no cais,

nem cães perdidos na memória.


(2006)

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