domingo, 1 de outubro de 2023

O palhaço e o fogo no circo


Num livro de 1968, Introdução ao Cristianismo, Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, no início do livro refere, por interposta obra de Harvey Cox, uma parábola do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Um circo foi tomado pelas chamas. O director, temendo que o incêndio se propagasse à aldeia vizinha, mandou o palhaço, já vestido para actuar, avisar os aldeãos do perigo que corriam e pedir-lhes ajuda no combate ao fogo. As pessoas, porém, pensaram que ele estava a representar, usando uma estratégia notável para levar mais gente ao circo. Em vez de se disporem a auxiliar, riam-se, sem que o pobre palhaço conseguisse convencê-las da gravidade da situação. Isto, até que as chamas chegaram à aldeia e já era demasiado tarde para evitar a tragédia. Ratzinger cita Cox opondo-se ao desalento deste relativamente à incapacidade de os teólogos serem escutados pelas pessoas destituídas de fé.

Apesar do optimismo do futuro Papa, não apenas os teólogos fazem, perante os não crentes religiosos, a figura de palhaços, como esta figura se encarnou em muitas áreas da sociedade onde os especialistas não cessam de chamar a atenção para o perigo iminente que rodeia as pessoas. Estas olham para eles como palhaços que estão a representar um papel, talvez sublime, mas que nada tem que ver com a realidade em que se vive. Os exemplos são muitos, mas bastam três. O aquecimento global, as desigualdades sociais e a erosão dos regimes democráticos. Em todas eles existe uma denúncia sistemática dos perigos que se aproximam, enquanto os destinatários das mensagens encolhem os ombros e riem-se, não tanto por admirarem o desempenho dos arautos – dos palhaços, na linguagem de Kierkegaard – mas porque não desejam crer nela, pois isso põe em causa os seus hábitos e o modo como estão instalados na vida.

Resta saber se a falta de fé perante os especialistas laicos que tratam do aquecimento global, das desigualdades sociais e da erosão dos regimes democráticos não é já uma consequência de uma falta de fé na palavra dos teólogos e na existência de Deus. Ao nível social, é plausível pensar que a erosão da fé religiosa – erosão que não nasce de uma atitude crítica de tipo Iluminista, mas de um comodismo egoísta perante as exigências da religião – tenha arrastado a descrença perante a palavra de todos aqueles que anunciam dificuldades e propõem alterações, mais ou menos radicais, ao estilo de vida que se tem ou se deseja vir a ter. Para os aldeãos das redes sociais, todos aqueles que trazem problemas são palhaços, cujas palavras fazem rir, mas não devem ser levadas a sério. Isto enquanto o circo arde e o fogo se propaga para a aldeia.

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