domingo, 29 de outubro de 2023

O ataque ao indivíduo


O que, no desvario que atravessa o mundo, está a ser posto em causa e corre o perigo de desaparecer? O que está em perigo é a ideia de indivíduo, a crença de que somos seres individuais, entidades distintas e separadas. Isto parece abstracto. Ora, é porque somos indivíduos que temos um conjunto de direitos, liberdades e garantias que visam defender a nossa individualidade, a nossa iniciativa e as nossas crenças, desde que não ponhamos em causa os direitos dos outros.

A ideia de que somos indivíduos é recente, apesar de ter raízes na filosofia grega e no Cristianismo. Vai-se afirmando a partir dos séculos XVII e XVIII. O estatuto de cada um não depende nem da classe social, nem da nação, nem da religião. Depende de ser um indivíduo dotado de razão com capacidade para escolher como deve orientar a sua vida. Quando se fala em direitos humanos fala-se dos direitos dos indivíduos. As grandes forças propulsoras do indivíduo foram o Iluminismo e o Liberalismo. O resultado, no campo político, foi a emergência das democracias liberais, onde cada indivíduo tem um voto e o Estado tem o dever de lhe garantir os direitos e liberdades individuais.

A ideia de indivíduo sempre recebeu contestação. Uns queriam reduzi-lo à casta (clero, nobreza e povo), outros à classe social (burgueses e proletários, e suas derivações), outros à nação (português, espanhol, etc.). Todos estes movimentos (conservadorismo, socialismo e nacionalismo), com diferentes matizes, pretenderam matar – e em muitos casos mataram – o indivíduo, reduzindo-o à comunidade de pertença. Contudo, a defesa da individualidade conseguiu enfrentar, no século XX, as piores derivas do nacionalismo, do socialismo autoritário e do conservadorismo reaccionário. O século XXI, porém, tem sido um tempo em que a ideia de indivíduo está sob violento ataque.

As guerras em curso devem-se ao nacionalismo, à vontade de afirmar os direitos de uma nação, mesmo que isso negue os direitos individuais. As ondas populistas têm, como seu último alvo, a desagregação dos direitos dos indivíduos, visando reduzir estes a membros informes de uma massa nacional. Os fundamentalismos religiosos querem aniquilar a consciência do indivíduo. Mesmo movimentos aparentemente emancipatórios substituem a defesa dos indivíduos pela das identidades grupais, que se distinguem pelo género, pela orientação sexual, pela comunidade étnica, pela religião de pertença, etc. Em todas as convulsões a que assistimos o alvo é aquela descoberta europeia de que somos indivíduos. Indivíduos com direitos, liberdades e garantias. 

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