Ángel Orcajo - Ocaso incandescente (1993)
Havia cifras difusas entre
carros, ruas cobertas de colmo, olhos desconhecidos empoleiravam-se no vão de
uma escada e a luz, a eléctrica luz da madrugada, desfalecia, pois a loucura
vinha beber, às primeiras horas, o álcool nas veias da cidade impregnadas de
óleo, eram agora avenidas, cobriam-se de carros a voar entre semáforos, verde,
amarelo, vermelho, um, dois, três, é a tua vez e lá vão rompendo vísceras,
rebentando intestinos, trazendo na mão o coração, sagrado coração, exangue,
mortal na palidez do dia que nasce. E assim a cidade foge da noite, abre uma
janela por onde entra, difusa, a luz pálida, que há-de ser intensa ao meio-dia
e declinar quando o cansaço a entregar ao ruído da noite, à ânsia das trevas, à
corveia da electricidade, ao império febril da triste ceifeira.
Para fazer acender as
lâmpadas continuamente havia um mecanismo. Nunca o descobri, mas acendiam e a
cidade era iluminada, as sombras cresciam, o vento uivava, o uivo era o seu
destino, enquanto as mulheres, pés brancos no caminho, sonhavam um longo
assassínio, homens decepados, braços a rolar pelo chão, a mão aberta, o
indicador já retorcido. Um bêbado entoava canções indecorosas, a voz arrastada,
as putas de sobreaviso e um grito vindo da viela, tudo à luz eléctrica da
noite, onde anjos sobrevoavam incógnitos a cidade e recolhiam destroços, compunham
orações e diziam o nome dos mortos, já desfigurados, aqui e ali tombavam, voavam
das sacadas cobertas de vidro acrílico, um rasto de alumínio, chocavam nas
luzes de néon e cobriam a noite de estrondos, tão fecundos que os eléctricos paravam
com guinchos de ferro sobre ferro, ateavam constelações nos carris, e a vida
continuava, como se nada tivesse acontecido, nada acontecera, e tudo continuava
perante a cegueira dos que viam e cantavam e saltavam.
A morte ali acampara com
seus olhos encovados, a foice, a ela lha deram, em riste, um lápis na mão, uma
lista branca, enegrecida pelo uso, a boca aberta, como se tivesse sono e ainda não
pudesse à cama recolher. E assim ia ela, entre carros e gente, procurava, os
olhos esbugalhados, a sua mercadoria, o comércio a esperava, e ia, disciplinada
e soturna, enjoada com o cheiro a vida, recolhendo um aqui, outra ali, e
riscava nomes, fazia cálculos, consultava calendários, como aqueles que há nas
oficinas de automóveis, mas de raparigas desfiguradas, tomadas pelo verme que
ela, distribuía entre vivos, para que rolassem sobre si e a ela se entregassem.
E como nos campos, também assim nas cidades, pois tudo é um grande mistério,
tão grande que nem a morte o compreende, limita-se a cumprir ordens, a andar de
rua em rua, casa em casa, sempre destratada, não fora um ou outro suicida e até
a esperança de ser amada morreria. Resta-lhe receber o salário pago em moeda
negra, de uso corrente, neste lugar onde as leis do mercado, sempre tão sagradas, não funcionam. Às
cifras difusas ninguém lê, pois tudo é mistério e se abro uma mão, logo um anjo
ali poisa e em silêncio adormece.
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