Viver de créditos tornou-se a essência das nossas sociedades. Isso é
verdade no domínio da economia. O crédito é aquilo que permite que esta
continue a rolar. Não é, todavia, desse crédito que quero falar. É outro
crédito. No passado dia 8 de Agosto atingimos o
limite do uso sustentável de recursos naturais disponíveis para este ano.
Isto significa que consumimos 60% acima da nossa biocapacidade. Desde esse dia
que estamos a viver de uma espécie de crédito da natureza. O Banco Mundial, por
seu lado, afirma
que, a manterem-se os actuais níveis de consumo e se a população atingir os 9,6
mil milhões em 2050, como está previsto, serão necessários quase três planetas
terra para dispensar os recursos necessários.
Estes dados tornam patente a existência de um conflito entre duas
racionalidades ligadas à nossa casa comum. Um conflito entre a racionalidade da
economia e a racionalidade da ecologia. Vale a pena olhar para a etimologia
destes dois vocábulos. Neste caso, a wikipedia basta. O termo economia vem
do grego οικονομία (de οἶκος, translit. oikos, 'casa' +
νόμος , translit. nomos, 'costume ou lei', ou também 'gerir, administrar':
daí "regras da casa" ou "administração doméstica").
A palavra [ecologia] tem origem
no grego "oikos", que significa casa, e "logos", estudo.
Tanto a economia como a ecologia têm na sua raiz o termo oikos (casa). A ecologia, porém, toma
como seu objecto referencial o próprio oikos,
a casa, enquanto a economia preocupa-se com as regras daquilo que se passa
dentro da casa. Dito de outra maneira, a ecologia preocupa-se com a Terra e a
economia com os interesses daqueles que vivem na Terra. A partir da primeira
revolução industrial (séculos XVIII-XIX) começou a esboçar-se um conflito entre
estas duas racionalidades. O interesse dos habitantes da casa – isto é, o
abismo infinito do seu desejo – entrou em conflito com as potencialidades dessa
mesma casa. Em resumo, enquanto a racionalidade económica exige mais consumo
para gerar mais riqueza e, assim, responder ao sem fim dos nossos desejos, a
racionalidade ecológica exige de nós austeridade e o fim de viver de créditos
da natureza, isto é, de dilapidar os recursos naturais.
Temos alguma coisa a aprender com os antigos gregos, com aqueles de
quem herdámos as raízes dos vocábulos
economia e ecologia? O que podem eles ensinar-nos? Podem ensinar uma coisa que,
com o triunfo do liberalismo, estamos prestes a esquecer. A importância da
política e, concomitantemente, do Estado. Entregar a resolução deste problema
ao mercado, à sua livre iniciativa, representaria o triunfo da racionalidade
económica sobre a racionalidade ecológica, o triunfo do princípio de prazer, consubstanciado
no consumo, sobre o princípio de realidade, que exige de nós a contenção dos
nossos desejos e uma virtude austera nos nossos consumos. Aristóteles, logo no
início da sua Política, sublinha
enfaticamente que governar a pólis
não é a mesma coisa que governar o oikos.
A política está acima da economia e é de outra natureza.
A partir do século XX, o Estado – com a sua máquina de violência
legítima – não é apenas necessário para evitar que atinjamos os direitos
naturais dos outros, a sua vida, a sua liberdade, a sua integridade e a sua
propriedade, ou para assegurar as regras do jogo do mercado. Para que a espécie
humana subsista, o Estado é chamado a arbitrar o conflito entre a racionalidade
económica e a racionalidade ecológica. Se os Estados cederem ao canto de sereia
dos interesses daqueles que habitam a Terra, se submeterem a lógica política à
racionalidade económica, então os Estados e a própria política abandonam a
missão que a espécie humana, há muito, lhes deu: assegurar a persistência da
espécie na Terra ao longo do tempo. Hoje em dia, a política não é apenas
necessária para proteger os homens uns dos outros ou das ameaças da natureza.
Ela é também necessária para assegurar que a casa comum, o planeta Terra, seja
ainda uma casa habitada e habitável nos próximos séculos.
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