George Seurat - Seated Bather (1883-84)
Começo com uma máxima filosófica: o mal sempre vem. Se tivesse nascido
na Grécia, há 2700 anos, seria hoje lembrado como um dos sete sábios, que seriam
então oito. Não nos desviemos, porém, do essencial. Este é o diário de um
banhista. Hoje, domingo, ocorreu o que temia na semana passada. Regra da casa:
ao domingo, ninguém põe pé na praia, seja esta qual for. O que aconteceu, hoje,
domingo, que tanta acidez me causa? Foi declarado dia de excepção. Por que
motivo, Senhor, fizeste tão inconstantes as tuas criaturas? Tudo para a praia;
a criançada banhante na vanguarda solar. Criançada quer dizer aqui: gente entre
os 20 e os 27 anos. Mas quem será fiel às regras expressas para regulação da
comunidade? No dia em que as regras não forem cumpridas por ninguém ainda serão
regras? E poderá uma comunidade, pequena que seja, viver sem regras? Não, não,
mil vezes não. Consola-me a imagem de Sócrates – não o glorioso engenheiro que
nos pastoreia – a recusar infringir a lei de Atenas e pôr-se ao fresco,
aceitando, corajoso e intrépido, a cicuta que o haveria de levar.
Eu, o banhista por antonomásia, decido abdicar do meu prazer da areia,
dos escaldões solares, da gratificante companhia dos milhares e milhares de
seres humanos que vêm exibir para a praia a sua humanidade, abdico, repito-me,
da excelência da sua companhia nas águas onde mergulho. Decido, reafirmo, num
gesto de puro altruísmo, sacrificar-me pelos valores comunitários, pelas
regras, sem as quais não há excepções. Vão sem mim, digo, com um ar pesaroso e
compungido, como se tivesse acabado de sair de um confessionário. Tenho pena de
não os acompanhar, faço notar, mas fico por aqui a garantir o cumprimento
zeloso das regras, a dar o exemplo que os mais novos, quando forem mais velhos
e perceberem o alcance do gesto, reterão e transmitirão à sua descendência, se
a tiverem. A esperança é a última coisa a morrer, dizem.
Abandonado por todos, sem esperança de uma sardinhada dominical,
condenado a uma refeição frugal, o fiel banhista aqui está perante o computador
a cumprir a sua missão: narrar a sua gesta, contar aos outros os seus feitos,
propagar ao mundo a sua epopeia nas praias de Portugal. É um fresco épico o que
o meu ego me pede, um fresco que cale as navegações de gregos e de troianos,
até de lusitanos. Sinto-me já o novo Camões anunciado pelo Pessoa. Suave é a
carícia das ninfas e o vento da inspiração. Tremo ao tocar no teclado, ao ver
os meus dedos a deslizar suavemente pelas teclas, à espera que grandes palavras
desçam pelos filamentos do meu ser e arrastem os dedos para a glória literária.
Mas o que resta a quem fica só? A memória, a doce mas infiel memória.
A recordação das aventuras tidas, dos banhos tomados, dos mergulhos dados, das
bolas-de-berlim tragadas. A única coisa que posso fazer é desfolhar o glorioso
livro da minha estadia a banhos e dar a conhecer os extraordinários episódios
onde, nestes dias, se revelou a minha essência de banhista. Um problema, porém,
assedia a minha razão. Será que vale a pena repetir-me? Não será este diário,
fiel acompanhante e confidente querido, a expressão mais viva dessas aventuras?
Não será este diário prova suficiente da minha gesta à beira-mar? Medito
longamente na ideia de me repetir e concluo a meditação com uma dolorosa
questão: valerá a pena fazer como as pessoas já entradas na idade e repetir-me até
não mais poderem ouvir-me?
Tomo, mais uma vez, uma decisão. Para quem é tão indeciso, a média de
decisões por dia não deixa de espantar. Não, penso com os meus botões, vou
poupar o leitor aos meus acessos temporãos de senilidade e calar-me. Desde que
deixei de ir à missa e ao futebol, o domingo sempre foi um dia triste,
salpicado de angústia. Remeto-me ao silêncio. Nele, conforta-me o espaço
espiritual onde a minha memória, a doce memória destes dias bem-aventurados, vai consolar-me. Sim, a rememoração sempre foi a mais doce das consolações. É ela,
caro leitor e cara leitora (sucumbir à novilíngua, que assegura a mais
verrumante igualdade de género, foi uma outra decisão terrível), é ela que vai ser o
analgésico para a dor de tanto abandono e de tanta traição. Rememorar as glórias
destes dias é o que resta a um velho abandonado, num domingo sem igreja nem
campo de futebol. É duro ser um fiel banhista. (averomundo, 2007/08/12)
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