Annibale Carracci - Caza (1595)
Havia restos de caçadas pelo
chão, animais em despojos assim frios, o sangue a aflorar a pele contaminada
pelo nada, o futuro, sempre tão ávido, o trouxera. Os olhos, agora tão
vidrados, escondiam-se nas órbitas e pouco naquelas naturezas mortas, tão pouco
natureza e já tão mortas, lembrava o gesto febril com que do destino fugiam,
cegos e surdos ao devir, para a ele se entregarem. Para os temíveis caçadores,
eram dias de júbilo, na cerca se viviam. As árvores tapavam de sombra as terras
e o calor, se aquecia num tempo inóspito, recuava movido pela inquietação das fatigadas
folhas ao vento.
As mulheres, em passos de
veludo e pensamentos inexplicáveis, levitavam e as saias, pois saias as
vestiam, subiam-lhes à cabeça. As pernas brancas, brancas e tão desarmadas, despiam-se
perante olhares atónitos, e as mãos acorriam como se socorressem marinheiros
dizimados por ondas e naufrágios. Não abandoneis a casa rodeada pela cerca, disseste,
pois estrangeiros fostes na terra e agora o que vos cabe é a espera da noite, o
tempo atroz, as flores precárias que desenharão na pedra, entre animais
tombados pela caça eterna, sinais de luz, uma rosa desfolhada, as nuvens que à
lua agasalham, o pano que ao pão, em cesta de vime, esconde.
Foi um tempo de triunfo, a
amarga morte só aos animais coubera e de todos os que na viagem tomaram lugar,
a nenhum a parca foi pelos deuses, sempre solícitos, arremessada. Quando a
tarde descaiu em direcção às trevas, as vozes entoaram salmos e cânticos
heróicos, os imortais dias de glória haviam tecido, banhados pela espuma que da
folhagem verde das árvores caía. Carne na carne se fundia e das mulheres suspiros
da boca se desprendiam. Um desbaratado exército, pela aurora, à vertigem da
manhã se entregou, as armaduras desfeitas, as armas pelo chão e no sítio das
cabeças a vivaz luz da solidão.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.