quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Livro do Êxodo 21. Morrendo morrerá

Paul Ackerman - Aubade sur la gondole

Eram tecedeiras. No vagar que era o delas, teciam longas horas, teciam-nas com dedos afilados e um murmúrio entre lábios. Obscuras sombras, ao serem tecidas por violentas e vorazes mãos, a tudo cobriam. Na voz rouca, voz era o que se ouvia, enchiam o lago do tempo, cobriam-no de suspeitas, de injúrias, a lama a crescer, num Inverno de dedos cruzados, para dentro do vazio que habitava cada casa. Os olhos já negros de tanto olhar abriam-se no fundo do rosto, caíam sobre o horizonte e cerravam-se. A vida, precária e sem esperança, era agora vendida a retalho, ao sabor das flutuações do mercado, do deve e haver, as mercearias fechadas e as tulhas vazias.

Não havia cerejas nem laranjas. Não havia vinho e pão. Os cereais tinham acabado e nada restava onde, naquelas tulhas do passado, os braços pudessem mergulhar as mãos, assim os terminavam. Pela noite, soltava-se um instinto mortal e elas, tecedeiras tão ferozes, vogavam pelas casas, cabelos soltos a tocar os seios descaídos, uma ânsia de assassínio no canto da boca, ou a solidão a aplanar o caminho do coração. Vinham à rua e uivavam, a montanha devolvia, num eco de língua lívida, o uivo, e a matilha de mulheres dispersava-se, cada uma para sua casa, limpavam o pó e, com cuidados sem fim, pegavam na tecelagem. Das suas mãos vinha o tecido do futuro, fresco, puro, quase luminoso.

Uma voz desceu dos céus e disse: o que ferir alguém que morra, morrendo morrerá. Elas encolheram os ombros e deixaram o dia escoar-se entre as pernas, coxas férteis dedilhadas lentamente, pele lustrosa no olhar que as olhava. A noite avançou incólume na escuridão sem estrelas, nas trevas primitivas onde tudo abrandava, e a morte cansada deixava a carne em frágil decomposição. Tudo caiu então para dentro da pátria do silêncio, arrastado pelo rio do esquecimento, dragado por uma linguagem nova, tão nova e tão incompreensível. De olhos desmesurados, as tecedeiras adormeceram. Sonhavam longamente, noites e dias sem parar, com impérios desfeitos, camisas de seda, o branco véu, à noiva no altar cobre.

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