quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Um árduo caminho


A proibição do uso de burkinis em algumas praias francesas, bem como o apoio que o primei-ministro Manuel Valls tem dado às decisões dos presidentes de câmara, torna evidente que a Europa – a França em particular – está perante um problema de enorme complexidade. Esta complexidade deriva de um choque entre duas visões culturais sobre o que é o comportamento adequado na vida social. O choque, todavia, não fica por aí, pois a situação leva a um conflito no interior dos próprios valores ocidentais. O caso dos burkinis é interessante porque torna a posição das autoridades francesas muito frágil, se se tiver um conta os próprios padrões ocidentais, e mostra bem que estamos numa situação onde não há soluções pré-fabricadas e prontas a aplicar.

Vale a pena ler a argumentação transcrita de Valls para perceber que ela omite duas questões essenciais. A primeira diz respeito ao facto de poderem existir mulheres que, sem qualquer coacção externa, queiram adoptar, por um acto livre, esse tipo de vestuário. Em segundo lugar, o uso do burkini não significa que as usuárias estejam a infringir o secularismo do Estado. Um Estado secular não implica que as pessoas não possuam crenças religiosas e que, em sociedade, se comportem em conformidade com as suas crenças, desde que essas pessoas não interfiram na liberdade das outras.

A França perante o problema posto pela presença do Islão poderia lidar com ele de dois pontos de vista. Valorizar a liberdade negativa. Cada um vive como entende, desde que não infrinja a liberdade de terceiros. Isto significaria valorizar o indivíduo e os seus direitos e liberdades. Significaria ainda que o Estado deveria punir todos os actos que atentassem contra essa liberdade negativa, incluindo aqueles que se passam nas comunidades e famílias muçulmanas. Isso exigiria pôr de lado o multiculturalismo e, acima de tudo, um longo e exaustivo trabalho policial, talvez impossível de realizar.

A França optou por manter-se fiel à sua tradição. Evoca a virtude republicana: o uso do burkini como da burka “não é compatível com os valores da França e da República”. E acrescenta Valls que “a República deve defender-se”. O problema é que as autoridades francesas agem segundo o princípio da suspeita. Suspeitam, como o diz a ministra para os direitos das mulheres, que se pretende “esconder os corpos das mulheres para que possam ser controlados”. Esta é a velha tradição que vem da época do Terror, da Revolução Francesa. Perante a suspeita da falta de virtude republicana, os jacobinos entretinham-se a decapitar pessoas. Hoje a França é civilizada, não usa a guilhotina, mas o princípio da virtude republicana é o mesmo, como é o mesmo o princípio de condenação: a mera suspeita.

Com isto não me estou a tornar advogado dos adeptos dos burkini e das burkas. Estou a mostrar que se chegou a uma situação paradoxal: para defendermos os nossos valores atacamos um dos nossos valores essenciais e raiz de todos os outros, a liberdade. Se permitirmos a liberdade de cada um vestir o que entende, uma parte dos cidadãos – as mulheres muçulmanas que não querem de livre vontade usar este tipo de indumentária – pode ser coagida a fazê-lo por familiares ou pela comunidade onde se insere, pois a República é virtuosa mas não tem meios para fazer cumprir a lei. Se se proíbe certo tipo de indumentária sem que ela ponha em causa a liberdade e a segurança de terceiros, então não respeitamos a própria liberdade. Seja qual for a solução adoptada, os valores ocidentais perdem sempre.

Esta situação remete-nos para o paradoxo do multiculturalismo referido em crónica de António Guerreiro, no Público. Stanley Fish defende que o “multiculturalismo é uma impossibilidade lógica”. A explicação pode ler-se no texto de António Guerreiro (para ler a argumentação de Fish ir para a jstor). O que me interessa sublinhar, porém, é o perigo que tudo isto representa. O perigo deriva da incapacidade da razão encontrar um caminho para a resolução destas situações de conflito cultural.  O paradoxo revelado por Stanley Fish mostra-nos um limite da razão. Quando a razão falha – e mesmo quando, por vezes, não falha – a saída para os problemas na vida em sociedade torna-se irracional, isto é, comprometida por emoções e sentimentos, os quais facilmente conduzem à violência.

Na actual situação, há todo um trabalho de pensamento - encontrar uma saída para o paradoxo - a fazer para evitar que as sementes de violência, já lançadas, não brotem vigorosas da terra. O que está a ser testado, em todo este processo, é a pretensão à universalidade dos princípios que o Ocidente tem sido porta-voz e a capacidade de encontrar um caminho para partilhá-los. Neste momento, a França enredou-se de tal modo que as soluções que adopta são aquelas que reforçam a posição identitária dos muçulmanos. O problema é de difícil solução. Nem a tarefa teórica nem a tarefa prática parecem fáceis, antes pelo contrário. A situação mostra que o caminho que está pela frente é árduo, muito árduo e de resolução intrincada, se a tiver. O pior, porém, que pode acontecer é entregar o assunto ao sentimento e à emoção, venham estes disfarçados de ideologia multicultural ou de devaneios identitários. É preciso pensar para agir. Fundamentalmente, é preciso não deixar que princípios e valores universais da razão se deixem arrastar, por inabilidade ou por impotência, para o particularismo identitário.

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