Maurice Prendergast - Bathing, Marblehead
É dura a vida de um banhista. Estava ontem muito descansado quando um
telefonema lançou o pânico. Para amanhã, a visita de uma amiga. O mundo
turva-se, isto de mulheres e praia conjuga-se com tal perfeição que já estava a
ver-me arrastado, em pleno sábado, imagine-se, para um areal pejado de corpos
espojados pelo chão e alegres trinados das criancinhas. Sim, sim, dessas mesmas
que o divino Mestre dizia para deixarem ir até Ele, mas Ele, sábio que era, não
ia à praia. Mesmo aquilo no Jordão não foi um banho, mas um baptizado, leram
bem, um baptizado, e esse só acontece uma vez na vida, pois uma pessoa não anda
sempre a mergulhar nas águas para lavar pecados. Não haveria João Baptista que
chegasse, e se querem lavar a alma que vão ao confessionário, não à praia. Estava
a ver-me arrastado, dizia, para o espectáculo dos portugueses em roupa
interior, há quem lhe chame fatos de banho, portugueses exuberantes, desejosos
de mostrar o viço e a peitaça e o coxame e a celulite e o pneu. Era este
programa audiovisual que já se desenhava no horizonte da pobre imaginação que
me coube em sorte. A coisa foi de tal maneira impressiva que passei a noite a
sonhar com praias cobertas de portugueses e eu entre eles a caminhar, como
sonâmbulo, a exibir a tristeza da minha figura, metido nuns boxers vermelhos a
que toda a gente teimava chamar calções de banho.
Quando me levantei, bem cedo e mal dormido, a coisa piorou. Estava um
céu azul e um sol esplendoroso. Ergui as mãos ao alto e disse: Senhor tem
piedade das pobres florestas, olha as ignições, ajuda este país malquisto,
apieda-te da lavoura, das plantas e dos animais, manda nuvens e chuva e tempo
fresco. Nada. Eis o verdadeiro sentido da derrelicção. Senti-me abandonado,
desprezado, humilhado. É por estas e por outras que as pessoas deixam a Igreja,
esquecem as missas, mandam ao diabo – salvo seja, t’arrenego, ó belzebu – os
mandamentos. A manhã caminha por aí fora, toma-se café, compram-se os jornais, e
uma voz insidiosa diz ó tanto calor, está mesmo bom para ir à praia, respondo ó
tanto calor, está mesmo bom para ficar em casa. E ali se fica naquela
indecisão, vai não vai, vais tu, fico eu, e eis que aquela amiga, a que haveria
de vir, liga a dizer que sim, que vem, mas não está disposta para a praia.
Respiro fundo, agradeço ao Senhor, sinto-me comovido. Talvez sejam
incompreensíveis os caminhos do Altíssimo. Salvo in extremis. É dura a vida de um banhista. (averomundo, 2007/08/04)
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