Edward Burne-Jones - Pygmalion and Galatea IV: The Soul Attains
Tal como é narrado por Ovídio, o mito de Pigmalião, rei de Chipre e escultor, permite pensar o amor platónico numa perspectiva muito diferente daquela que é veiculada pelo senso comum. Desiludido com o comportamento das mulheres, o escultor entrega-se a um duro celibato. "Pigmalião sempre vira a vida dissoluta dessas mulheres. / Por isso, revoltado com os vícios sem conta que a natureza / conferira à índole feminina, vivia solteiro e sem esposa; / e por muitos anos não teve com quem partilhar o leito. (X 243-6)" Eis a revolta platónica contra o mundo sensível e a ascese como caminho de sabedoria.
"Um dia, com arte espantosa e feliz, esculpiu uma peça / de marfim da cor da neve, com a beleza com que mulher / alguma consegue nascer; e enamorou-se da sua obra. (X 247-9)" A estátua não representava mulheres reais, mas a beleza feminina ideal. Era uma emanação da Ideia platónica. Contudo, o escultor enamorou-se por esta beleza ideal que, por certo, lhe pareceu bem mais real e efectiva do que as belezas particulares das mulheres existentes no mundo sensível.
Foi esta beleza que desencadeou nele a paixão erótica e o levou a pedir à deusa do amor, Afrodite, que lhe concedesse uma esposa idêntica à mulher de marfim. Esta concede-lhe o desejo: "Enquanto se pasma, e se alegra na dúvida e receia enganar-se, / uma e outra vez o amante toca com as mãos nos seus desejos. Era corpo humano! As veias tacteadas pelo polegar latejam! / Então, o herói de Pafo pronuncia palavras solenes / de gratidão a Vénus (Afrodite). Comprime, por fim, com os lábios / os lábios que já não eram falsos. A donzela sentiu os beijos / que ele dava e corou. E erguendo o tímido olhar para o dele, / vislumbra, ao mesmo tempo, o céu e quem a amava. (X 287-94)"
Ao ler-se a ideia de amor platónico através do mito narrado por Ovídio, descobrimos aquilo que Platão sempre propôs na sua filosofia. Não uma negação da realidade, mas um contacto intensificado e paroxístico com essa mesma realidade. A experiência comum, aquela que se funda no embotamento dos sentidos, toma a pura aparência pela realidade. É preciso ir para além dela. Ir para além dela é ascender à Ideia e tornar esta concreta, inscrevê-la no mundo, tal como Pigmalião o fez ao esculpir o marfim, e dar-lhe vida através da acção mediadora do divino, de Afrodite, isto é, do amor. Deste ponto de vista, o amor platónico não é um amor deserotizado. Pelo contrário, é o erotismo intensificado e elevado a uma potência infinita. Descobre-se que a ascese não é a negação pura e simples do sensível, mas o caminho para uma experiência sensível mais intensa, iluminada e incendiada pela Ideia. A Ideia é o que há de mais perigoso na filosofia platónica. Não porque negue o mundo sensível, mas porque tem a capacidade de o iluminar e incendiar.
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Citações: Ovídio (2007). Metamorfoses. Lisboa: Livros Cotovia. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto.
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Citações: Ovídio (2007). Metamorfoses. Lisboa: Livros Cotovia. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto.
Muito bom texto. Iluminado. Então, teremos um «Quero, logo existirá!»
ResponderEliminarO problema está mesmo no querer. Será assim capaz a a vontade? Será capaz de se apagar na ascese para retornar como incêndio?
EliminarCreio humildemente que, em princípio, sim, que o querer possui essa capacidade. Há quem levite...O problema estará então na falta do querer, na falta de força de vontade...mas quem sou eu....
ResponderEliminarPor exemplo, o Mestre Eckhart propõe o abandono completo e total da vontade própria, para que no homem se manifeste apenas a vontade divina. Mas esse abandono da vontade implica uma vontade muito forte.
ResponderEliminarÉ-me difícil separar a vontade própria da vontade divina. Se somos todos «filhos» de Deus, ou seja, centelhas d'Ele, onde ficará a fronteira entre a vontade divina e a vontade própria? E o abandono total da vontade própria não será um desejo de morte? Os cátaros falavam disso, do amor à morte, que me lembre...
ResponderEliminarTecnicamente, a vontade própria significaria a oposição entre a vontade do indivíduo e a de Deus. O facto de sermos filhos de Deus implica o livre-arbítrio, logo a possibilidade do mal e a não coincidência entre a minha vontade e a vontade divina. Assim, não basta ser filho de Deus, é preciso ser em conformidade com esse estatuto, digamos assim. A perspectiva cátara é uma perversão niilista das perspectiva mística. Os místicos não cultuam a morte mas a vida no seu esplendor máximo.
EliminarO problema será então compreender qual a vontade de Deus,o seu propósito. Pois ele há coisas que Ele faz que me colocam muitas dúvidas sobre a Sua amorosa essência. Por exemplo, dizem, e quantas vezes não é verdade, que leva cedo os que mais ama.
ResponderEliminarMas como sabemos nós quem são aqueles quem Ele mais ama, digamos assim?
EliminarAh...é a voz do povo que diz que Ele leva cedo quem mais ama e, dizem, a voz do povo é a voz de Deus...Ou talvez o dito não passe de um sublimar, aceitando, a partida repentina dos que nós mais amamos. Deus é incognoscível. Por isso, não poderemos nunca saber se é amoroso ou não ou se será simplesmente o Bem e o Mal. Bem que no fundo não é Bem e Mal que no fundo não será Mal. Nada de totalitarismos nessas coisas. É como uma fuga de Bach, aberta ao infinito.
ResponderEliminarÉ pelo menos uma hipótese infinitamente aberta.
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