A súbita culpa assim acordada,
As negras noites em branco, o peso do mundo,
Olhar desvanecido de quem se abandonou.
Naqueles dias a matéria pura do prazer
Vinha azedar as tardes tranquilas,
Perfurar o coração e cair sobre o corpo,
Um édito irrevogável.
Tudo retorna agora, a silhueta turva, antes oculta,
Escura de tanta consciência clara,
Maculada de trevas, a luz existia.
Um coro de ménades dança ao longe,
Os corpos despem-se, a roupa rasgada pelo chão,
E o sangue uiva na planície,
Ecoa na colina, zune, trovão na infância.
O pólen gela, cai, pedras no chão, e
O coro de bacantes troveja a terra, chama pelo deus,
Oferece taça de fogo e pão de erva azeda
A quem passa, cabisbaixo, peso na cabeça.
A dor inclina os ombros, dobra-os,
Enquanto as vértebras cedem, o corpo descai,
Ébrio de si e da sua culpa e do seu temor,
Para a terra bravia, batida pelo frenesim da carne,
A pele transfigurada e o pavor da luz ao olhar.
Tique-taque, tique-taque, ouve-se,
A alma desfaz-se em lágrimas, convulsa,
Ao som de uma velha caixa de música.
Onde fica a floresta-virgem da infância,
Essa planície infectada de inocência?
Tique-taque, tique-taque,
tique-taque…
Um rufar de tambores recorda o velho porto,
Os barcos carcomidos pela água,
O cheiro a combustível derramado
Entre cardumes de gaivotas sôfregas e amargas.
As romãs oscilam nos ramos, final do verão,
Caem por terra, irrompem bagos nessas mãos.
Os teus pensamentos, aves migradoras,
Ordenam-se sobre os fios e debandam para longe,
Cada vez mais longe, um paraíso solitário,
Equidistante, nem trópico nem pólo.
Sonhas, a romã sumarenta, os cardos no jardim.
Batem à porta, entram-te estranhos no sonho,
Vêm sonâmbulos, carregados com o teu peso,
Encharcados de lágrimas, as que terias para chorar.
Esperas então, o silêncio chegará,
As chuvas anunciarão a invernia da eternidade.
Nas primeiras inundações, os mortos afogam-se mais
E mais na sua morte e se o clarim toca na manhã,
Levantam-se, perfilam-se, marcham de olhos molhados,
Esquecidos dos prazeres da vida, dos prazeres da morte.
O sinédrio, inundado de violetas, espera-os.
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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.
Estava a reler este poema e a pensar num adjectivo. Luxuoso. É o que melhor diz desta tessitura semântica rica de cruzamentos e de referências.
ResponderEliminarO que nunca deixa de surpreender é como as coisas que fomos absorvendo ficam dentro de nós, escondem-se, cruzam-se e saltam cá para fora sem sabermos que elas um dia entraram, sem darmos por elas. Talvez a Tradição seja isso: ser capturado pelas coisas que entraram em nós.
EliminarMuito bom. «Ser capturado pelas coisas que entraram em nós» talvez seja a Tradição. Porém, transformá-las e, a partir daí, criar, será a essência da Revolução.
ResponderEliminarA revolução é uma metáfora política vinda da astronomia. A revolução de um astro significa que o percurso que ele descreve para retornar ao lugar onde estava. Não me é simpático ver o processo criativo a partir da metáfora da revolução. Mas isto é uma idiossincrasia.
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