quarta-feira, 27 de junho de 2012

Fazer poesia

Albert Rafols Casamada - Nuevos proyectos de poesía (1968)

Quando se tem a pretensão de escrever poesia, há um momento em que se é levado a perguntar "o que é a poesia?" Essa pergunta provém, contudo, de um equívoco baseado na ingenuidade. Essa ingenuidade funda-se na ideia de que existe uma coisa tal como a poesia e que esta coisa se manifestaria na diversidade dos trabalhos poéticos. Estes seriam a aparência de uma essência, hierofanias onde a deusa, eternamente una e idêntica a si mesma, se manifestaria. Passado este momento de ingenuidade, aquele que tem a pretensão de escrever reformula a questão e coloca, então, a pergunta "o que é para mim a poesia?"

Esta talvez seja a pergunta do poeta. Ela não se preocupa com uma definição universal do fenómeno poético nem procura uma essência. Ela questiona não o filósofo mas o artesão. Perguntar "o que é para mim a poesia?" não significa abrir a possibilidade de dar uma definição particular, pessoal e singular do fenómeno poético. A pergunta remete para uma reflexão acerca daquilo que se tem feito, acerca da especificidade do seu trabalho, acerca dos seus interesses na utilização da linguagem em forma de poesia.

Paul Ricoeur via a metáfora como um poema condensado ou o poema como uma metáfora expandida, um conjunto de metáforas que tecem um texto que funciona devido à sua impertinência semântica. Compreender o que Aristóteles diz da metáfora ajudará a compreender como vejo, no presente momento, o trabalho poético. Na Poética (1459 a 8), Aristóteles diz: "com efeito, bem saber descobrir as metáforas significa bem se aperceber das semelhanças". Metaforizar, ou bem metaforizar, seria então apreender o semelhante naquilo que é tido como diferente, seria aproximar dois campos ontológicos  afastados através de uma estratégia discursiva. O que me interesse em tudo isto é a ideia de aproximação do distante.

O processo educativo dos seres humano tem como finalidade ajudar cada novo membro a organizar o caos das sensações e dos sentimentos (entendidos estes como meras sensações internas), daquilo que chega até nós vindo do mundo ou de nós, num mundo mentalmente organizado e partilhável com os outros homens. Esta estrutura que a educação fornece - qualquer educação, mesmo a mais rudimentar - não é uma descrição da realidade tal como esta é, mas uma descrição tal como é útil à espécie humana e tal como permite que ela funcione no mundo. Utilidade e funcionalidade das descrições não significam verdade. Estas descrições organizam a realidade, pondo-lhe uma determinada ordem e hierarquia. Nessa ordem e hierarquia há coisas que estão próximas e outras que estão afastadas. A metáfora aproxima, em contradição com a descrição fornecida pela educação humana e pelo uso corrente, coisas que estavam afastadas.

Se olho para aquilo que tenho colocado neste blogue e para o que estou neste momento a escrever, percebo que a ideia de aproximar o afastado é o que me preocupa no artesanato poético. Escrever um poema é cruzar fios vindos de diversas e afastadas origens. Sensações provenientes de determinada experiência física podem ser cruzadas com uma memória remota de infância ligada a algo que nada tem a ver com aquelas sensações. Escrever um poema é, neste momento e para mim, aproximar o diverso da experiência (sensações, sentimentos, memórias, emoções, intelecções, juízos, desejos, imagens, etc. e os respectivos conteúdos) tecendo textos que descrevem o mundo de uma forma que a educação que recebemos não cauciona. Isto significa que um verso não tem de ser, embora o seja muitas vezes, a continuação "natural" do anterior. Significa que uma estrofe possa ter um conteúdo dissonante relativamente a anterior, com alteração de temática e de registo (do sujeito que falta, do tempo verbal, etc.). 

Naquilo que tenho feito, isto não significa uma aproximação a esse caos originário que a educação humana domesticou e ordenou. Significa apenas experiências de reordenamento não habituais. O uso da língua, com o seu sistema lexical e as suas categorias gramaticais, asseguram que estas novas ordenações ganhem um valor semântico, e sejam, julgo, compreensíveis a quem as lê. Neste momento, fazer poesia é, na perspectiva que adopto, refazer paisagens, através de processos de aproximação do que está afastado pela convenção veiculada pela educação e pela vida em sociedade, fazendo redescrições da paisagem.

Nada disto será novo. Enunciá-lo tem apenas uma utilidade privada: sinalizar o sítio onde me encontro. Para os eventuais leitores do que escrevo nada disto tem um particular interesse. A única coisa que é importante é se os poemas provocam ou não uma experiência estética. Se provocam muito bem; se não, muito bem na mesma. Seja como for, há uma coisa que se torna clara para mim: este trabalho de aproximação do inaproximável só pode ser um momento. É preciso descer, ultrapassar o jogo das descrições, a substituição das paisagens habituais por outras inabituais. O trabalho poético deverá conduzir-me ao caos, aos fragmentos heteróclitos que compõem as nossas experiências, às partículas subatómicas dos átomos de sentido, à energia originária, se for possível. Isso, porém, não me é permitido de momento. Não sei gramática suficiente para descer tão fundo na experiência humana.

7 comentários:

  1. Este seu texto é, em si, para mim (que sou leiga nestes temas) a demonstração, pelo contrário, do que é a poesia. Quero eu dizer que é um texto descritivo, elaborado, reflexivo, fundamentado (quando, digo eu, a poesia nasce despreocupada, espontânea).

    Sou fervorosa amante de poesia e se a mim me pedissem para descrever o que é a poesia teria a maior dificuldade. Já uma vez escrevi no UJM que, para mim, a poesia tem muito em comum com os exercícios da mais pura matemática, nomeadamente, da álgebra. Exemplifiquei com um polinómio enorme, cheio de variáveis, constantes, operações, e mostrei como através da identificação das redundâncias e da respectiva simplificação se pode conseguir reduzir esse complexo polinómio a um simples binómio, quando não a uma simples constante.

    Decanta-se, retira-se o vício e o artifício, simplifica-se - e o que fica é a essência, a coisa na sua pureza original.

    Mais do que isso não é poesia (acho eu).

    Mas não basta (digo eu). Tem que haver uma toada, uma música subjacente, abstracta, qualquer coisa que, permita, ao ouvir, seja em que língua for, perceber que há ali uma outra linguagem, talvez universal.

    Isto sob o ponto de vista da forma. Sob o ponto de vista do conteúdo, penso que não interessa muito. Pode o tema ser sobre um movimento, um sentimento, um voo, uma história, um pensamento solto.

    Não sei se faz sentido o que escrevi mas, de qualquer forma, aqui fica o apontamento do que, sobre o assunto, pensa uma pessoa que gosta muito de poesia, nomeadamente da sua.

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    1. Há, de facto, uma visão formalista das artes, incluindo da poesia. Não sei se essa cisão entre forma e conteúdo faz algum sentido. A construção textual na poesia, pelo menos a que eu faço, não visa transmitir um conteúdo que eu possuiria "a priori" e que se exprimiria através do poema. Cada poema, contudo, propõe a possibilidade de um novo campo semântico, do desenho de uma nova paisagem. Fá-lo com quê? Com as estruturas formais com que opera sobre o léxico. Eu diria que a poesia ainda não é música. É o momento em que som e sentido estão unidos, mas que ainda não está decidido se "aquilo" cai para o lado do puro som ou para o campo da significação. É o lugar em que o ritmo lembra a música, mas a metáfora aponta para o sentido, para a sua invenção. Dito poeticamente, a poesia é o crepúsculo. E isto não é uma afirmação romântica.

      Agradeço também a atenção com que tem olhado para o que escrevo, nomeadamente para a minha poesia.

      Só mais uma coisa. Esta reflexão poética - que não é tanto uma reflexão teórica mas técnica - terá, certamente, continuidade, num trabalho de questionamento daquilo que vou fazendo.

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  2. Leio com atenção o que escreve e, depois de pensar, tudo me parece fazer sentido. Mas não consigo deixar de achar graça à forma tão compenetrada como se auto-analisa no que faz.

    Mas isto da poesia é daquelas coisas que parte do que é, tem que ser reservada a quem lê.

    Eu, lá no meu blogue 'Ginjal e Lisboa', gosto de fazer um exercício: copio um poema, depois escolho uma fotografia que me pareça que tem algo a ver, e, sem pensar, começo a escrever algo que me tenha sido suscitado pelo poema conjugado com a fotografia. De certa forma, é a exposição imediata do que a poesia me fez evocar. É um exercício, apenas isso. Mas que, sendo extrovertida, é a minha forma de mostrar a impressão imediata do poema em mim.

    Mas um amigo meu, pessoa culta, de vasta (e usada) biblioteca, com quem gosto de falar do que lemos, não consegue perceber o interesse da poesia. Nunca lê. Para me demonstrar o nonsense que é a poesia, pega num livro e lê como se estivesse a ler prosa. Geralmente tudo perde de imediato a beleza e o sentido. E eu fico desconcertada, quase incapaz de defender a beleza daquilo. Ele pega, por exemplo, no Eugénio de Andrade, despacha a leitura de um poema em três tempos e quase soa a uma minúscula redacção infantil.

    O que falta ali, é a respiração, são os silêncios, é o sentido dado por quem lê.

    Por isso, o que é a poesia?

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    1. O poema pode ser visto como a pauta onde está escrita uma sinfonia. É preciso interpretar, para que haja música. Ler poesia como se lê prosa não é ler. O corte da linearidade que representa o verso é uma indicação dada ao leitor, um ruptura com a visão prosaica do mundo. Nem me parece que seja muito problemático a ausência de beleza. O belo há muito que deixou de ser categoria estética orientadora do trabalho artístico. Mesmo sem essa beleza a poesia continuará na destruição do sentido comum, das paisagens geradas pelo hábito. Ela é um sítio des-consensual.

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  3. Por fim, algum tempo para comentários...

    «A única coisa que é importante é se os poemas provocam ou não uma experiência estética. Se provocam muito bem; se não, muito bem na mesma.» Sim, os poemas que escreve provocam experiência estética.

    Quanto ao resto, quanto às interrogações, às divagações, às infinitas possibilidades de definir o que é ou não poesia, só me ocorre a famigerada frase de Magritte: «Ce ci ce n'est pas une pipe»...ou seja, o objecto apesar de pintado não é a Coisa.

    E, a propósito de Magritte, lembro-me de um outro quadro deste pintor-poeta: O Império da Luz, que é, a meu ver, um genuíno poema (visual). Provoca uma intensa emoção estética.

    Mais uma vez, um belíssimo texto seu.

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    1. Muito obrigado. Sim, um objecto estético não é uma mera representação, não é a Coisa (representada), mas não deixa de ser a Coisa (em si), a que é pintada, escrita, esculpida, etc.

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