Giorgio Chirico - El doble sueño de primavera (1915)
Com a aproximação da morte de Hosni Mubarak, a comunicação social focou
de novo a sua atenção no Egipto. O que se descobre é um país em grande
convulsão política, à beira de uma tragédia. A transição à democracia deu o
resultado que se sabe. A segunda volta das eleições opôs um homem da ditadura
de Mubarak ao representante da Irmandade Muçulmana. Todas as ilusões sobre uma
democracia liberal esbarraram no pronunciamento do povo. Como se sabe, a
instigação à democracia deu um banho de sangue na Líbia e outro, ainda em
curso, na Síria. Quanto à Tunísia ver-se-á o que o futuro traz.
A comunicação social nunca perde uma oportunidade para simplificar – e
reduzir à caricatura – a realidade. Aquando das revoltas no mundo árabe, não
teve pejo em transferir a designação de primavera – uma metáfora que diz
respeito às experiências políticas europeias – para os acontecimentos nos
países muçulmanos em convulsão política. Esta simplificação lançou um enorme
véu sobre a realidade e fez nascer nos incautos a ilusão de que esses países
iriam passar por uma fase de transição à democracia idêntica à que se passou na
Europa. Esta simplificação serviu também para esconder, ou para legitimar, a
vergonhosa interferência de alguns países ocidentais em acontecimentos
inomináveis.
A existência de pessoas que, nesses países, aspiram a uma democracia
política e a um estado laico está fora de dúvida. No entanto, o sentimento das
massas assenta numa visão salvífica e libertadora do Islão. O sentimento de opróbrio
sentido, a pobreza reinante, a injustiça sem fim devem-se, no sentimento
popular, não ao Islão mas à corrupção da mensagem islâmica, uma corrupção
devida às elites políticas que perverteram a mensagem do profeta. O que está em
jogo não é a democracia, mas a possibilidade de voltar, ainda que através dos
votos, à mítica pureza do Islão. Para o mundo muçulmano a bandeira da
libertação e da emancipação não se encontra na democracia política nem na
separação da política e da religião. Assenta na própria religião. Não perceber
isto significa não perceber nada do que se está a passar.
A primavera árabe é uma metáfora para um sonho duplo e conflituante.
Por um lado, o sonho dos ocidentais em exportar a democracia – e a influência
livre dos mercados – para um território que lhe é estranho; por outro, o sonho
de amplas camadas populares que pretendem a implantação de um Islão mais puro e
rigoroso, de um Islão que varra da face da Terra a injustiça e a corrupção, que
o mundo árabe simboliza no modo de vida e nas instituições ocidentais. O que o
sonho ocidental alimentou não foi a conquista da democracia, mas mais um dos
tradicionais banhos de sangue com que o Islão se purifica.
Os usos e costumes dos árabes e outros povos islâmicos, constituem uma "impossibilidade" total para a compreensão do mundo ocidental que não os entende, mas insiste em avaliá-los à luz dos seus estereótipos, mesmo que, ou talvez por isso, essa postura possa conduzir a guerras sucessivas.
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