Edward Burnes-Jones - The Soul Attains (IV of IV), First Series
A história de Pigmalião contada ontem, no âmbito de uma reflexão sobre o platonismo, tem uma outra vertente particularmente interessante. Diz respeito à relação do artista com a sua própria obra. De certa maneira, o mito de Pigmalião é uma resposta ao mito de Narciso. Narciso apaixonou-se pela sua própria imagem, pelo reflexo dela na água, isto é, apaixonou-se pela sua aparência. Este amor-próprio é estéril e condena o amante ao definhamento. No caso de Pigmalião, a saída é diferente. Se tanto Narciso como Pigmalião estavam descontentes com a realidade do mundo sensível, com as mulheres - a ninfa no caso de Narciso - que se poderiam oferecer ao seu amor, Pigmalião encontra uma saída criadora. Em vez da esterilidade da contemplação do seu próprio reflexo, criou o objecto do seu amor.
Nesta criação ele, apesar de se apaixonar por algo que lhe saiu das mãos, rompe com a pura imanência e joga-se no devir da existência e no contacto com o outro. Deste ponto de vista, que não é um ponto de vista estético, a arte é uma possibilidade de rompimento com a clausura do ego. Criar, para o artista, significa transcender-se, ir para além de si, quebrar as fronteiras rígidas onde se encontra preso. É, por seu turno, um acto devocional ambíguo, pois a obra de criação representa uma abertura para a transcendência e, ao mesmo tempo, pelo facto de ser a obra própria que se ama, uma forma de reter uma ligação ao próprio ego. A arte surge então como uma espécie de ensaio, de uma experiência no mundo fora de si, mas de uma experiência ainda limitada por um amor circunscrito à sua obra. A consumação da viagem passará, por exemplo, por experimentar e compreender essa Ideia, que está para além de si e do mundo sensível, que foi modelo da obra. O mito de Pigmalião mostra-nos que o caminho de ruptura com o narcisismo começa com a arte para continuar na filosofia. Isto evidencia ainda uma outra coisa: nos mitos gregos incoava já a filosofia e que ela não é compreensível, mesmo hoje, sem a sua ligação radical à imaginação mítica.
Assim, nessa interpretação, existem dois caminhos,o de Narciso que morre apaixonado pela própria imagem, perdido no seu ego e sem salvação possível. O caminho de Pigamalião é o da salvação pela Arte, pela criação do homem, pelo querer, pelo fazer. Contudo, conhecia outra versão do mito de Narciso, talvez mais trágica, ou poética, que diz que Narciso vivia apaixonado pela sua irmã gémea e que, quando esta morreu,louco de dor, procurava ver nos seus próprios traços as feições da irmã gémea e que, assim, morreu. Em suma, consumiu-se na procura impossível do outro, a quem amava.
ResponderEliminarNesse caso seria antes um Narciso incestuoso. Mas no próprio Pigmalião há uma inclinação incestuosa.
ResponderEliminarDe pai criador para o filho(a) criado...
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