sexta-feira, 29 de junho de 2012

A invenção de Crato


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.


Quase sempre as aparências iludem. Aquilo que parece razoável ao senso comum, se visto criticamente, revela-se um completo disparate. A educação é um dos lugares onde isso é mais notório. Não houve ministro que não tomasse decisões que o senso comum aplaudiu e que a realidade teve o desplante de as mostrar como um disparate desmedido.

Nuno Crato não é diferente dos seus predecessores. Descobriu agora uma medida – ele, na ignorância que tem da realidade escolar, deverá julgá-la genial – para fazer aprender os alunos que não aprenderam durante um certo ciclo escolar. Segundo li, os alunos do 1.º e 2.º ciclos do ensino básico, após a realização de exames, podem ser sujeitos a mais um mês de aulas, desde que não obtenham resultados positivos. O senso comum, por certo, aplaudirá entusiasmado a clarividência do ministro.

Contudo, o facto de se ser professor universitário de matemática e ministro não é prova suficiente de que se saiba pensar sobre a realidade. Alguém que conheça a escola em Portugal acredita que esses alunos irão aprender num mês aquilo que não aprenderam durante anos? Alguém que lide com essas crianças acredita que elas vão suportar de boa mente aulas no tórrido calor de finais de Junho e durante parte de Julho, enquanto os colegas estão já em casa?

A medida anunciada é pura preguiça intelectual. De facto, existe um problema de aprendizagem em Portugal. A culpa já foi atribuída aos professores, aos programas, às disciplinas do currículo, às escolas, ao sistema, a cada um à vez e a todos em conjunto. Cada ministro inventou uma solução disparatada que não solucionou nada. Esta é mais uma, ainda mais disparatada que as anteriores.

Todas estas pseudo-soluções servem para ocultar o núcleo onde reside o principal problema, os alunos. Mais do que tomar medidas, é urgente perceber claramente o fenómeno, caracterizá-lo, para depois agir em conformidade. Há perguntas que devem ser feitas e respondidas: Por que razão a cultura de muitos alunos é adversa à aprendizagem? Por que motivo muitas famílias, mesmo se gostam de intervir na escola, não são exigentes relativamente à atitude escolar dos seus filhos? Por que razão a sociedade portuguesa valoriza tão pouco o estudo? É aqui que reside o problema e só aqui pode ser encontrada uma solução eficaz.

Sem mexer nesse sítio difícil, bem podem os ministros aumentar o tempo de presença dos alunos na escola. Podem mesmo inventar dias com 48 horas e anos com 24 meses para encerrar as crianças numa sala de aula durante 30 horas diárias, 22 meses por ano. O problema manter-se-á. Tanto amadorismo cansa.

6 comentários:

  1. E tem respostas para as suas pertinentes perguntas?

    Posso eu, exterior que sou a esse meio, dar parte da minha opinião?

    Pergunta retórica, claro, pois vou já avançando.

    As crianças hoje nascem a intuir como se mexe num iPad, como se escolhem filmes no YouTube,, aos três anos, sentam-se num sofá, pegam no comando, escolhem um canal, e pegam num telemóvel táctil e enviam um sms e por aí fora (e não é uma metáfora: tenho constatado isto em minha casa).

    Ou seja, tudo fácil, óbvio, intuitivo, ao alcance da mão. Ou seja, tudo tão contrário à aquisição lenta de conhecimentos, por métodos tão opostos àqueles a que estão habituados, em que não é preciso ler instruções ou ouvir explicações para chegarem onde querem.

    Poderia invocar mil outras razões, mais profundas, poderia falar das vidas agitadas ou desestruturadas dos pais, poderia falar da falta de jeito ou da falta de empatia de alguns professores que, focados que têm estado com as questões em volta da 'carreira' (coisa que não sei bem o que é pois é terminologia que, pelas minhas bandas, não existe) e das avaliações (neste caso, luta que nem cheguei a perceber, habituada que estou a avaliar e a ser avaliada), que talvez se tenham desinteressado um pouco por perceber estas alterações comportamentais nos miúdos, ou talvez seja das interrupções sucessivas nas políticas governamentais - mas fico-me, por agora, por aquilo que referi acima.

    Claro que prolongar 1 mês, nas actuais circunstâncias, não vai resolver nada - mas talvez pudesse, até, ser uma boa ideia se isso significasse afastar os miúdos da solidão de uma sala em frente da televisão, ou da rua, no caso de meios carenciados, ou se a escola, com uma população reduzida, fosse um local quase familiar, onde fossem alvo de uma atenção mais dedicada, se pudessem explorar outros aspectos a que durante a agitação do ano lectivo não prestaram atenção.

    Isto é o que me parece.

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    1. A questão da cultura digital é apenas um aspecto relativamente recente. Veio acentuar o problema, mas não é a sua causa. Sempre me lembro dessa atitude e do desprezo popular e generalizado pelo estudo. É uma tradição nacional. Um exemplo interessante é o desprezo com que sempre foi olhado no PSD um indivíduo como o Pacheco Pereira. Isto é uma cultura.

      Não é verdade que os professores tenham estado focados em questões de carreira. São imagens fáceis propagadas pelos media, mas quem está numa escola sabe que não é assim. Dentro da sala de aula ninguém se lembra da carreira. Também a questão da avaliação não se ligou propriamente ao problema de ser avaliado, mas ao modo da coisa, o qual, além de ser supinamente burocrático, permitia e permite que um professor medíocre seja, se souber orquestrar a sua avaliação, atingir a excelência, mesmo com quotas. O problema do professorado em Portugal não é o fundamental (mas será dentro de anos um problema central, pois criaram-se as condições para que as novas gerações olhem para a profissão com desprezo).

      Na Finlândia, o primeiro ciclo tem apenas 14 horas semanais de aulas, contra as 27 que, na prática, existem em Portugal. Os finlandeses ficam por norma no topo dos estudos internacionais, nós no fim. O que difere é a atitude da população perante a escola. A importância que é dada socialmente ao estudo é grande e isso reflecte-se em várias coisas, entre elas na atitude dos alunos. Reflecte-se também no prestígio da profissão de professor. Como cá os pais querem que os seus filhos sejam médicos, advogados (se o pai o for) ou arquitectos, lá a profissão de professor do primeiro ciclo (este ciclo tem seis anos) está ao mesmo nível (cá, hoje em dia, é uma profissão absolutamente desprezada nas classes médias). A competição, na Finlândia, é feroz para entrar para a profissão.

      Seja como for, a revolução digital coloca mesmo grandes problemas com que a escola - um lugar conservador por natureza, pois conserva a tradição a transmitir - ainda não sabe lidar. Acabará por aprender.

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  2. Tem razão ao dizer que a imagem do professor tem saído denegrida e, penso eu, a isso, os próprios professores não são alheios. Claro que a comunicação social também tem ajudado. É certo que não é de amostras não significativas que se podem construir teorias mas a imagem de alguns professores nas manifestações, usando argumentos absurdos e básicos para rebater a questão da avaliação, a posição indiferenciada de Mário Nogueira que representa os interesses dos professores, nada disso ajuda ao prestígio de uma profissão que deveria ser nobre.

    Mas há também muita acomodação por parte dos professores, habituados a horários muito baixos, férias muito longas, quando comparados com profissionais de outros sectores. Conheço vários professores e eu própria, em início de vida activa, o fui.

    Mas concordo que a raiz do problema vem de mais fundo. Na Finlândia creio que cada escola estabelece o seu programa e que tudo parece absolutamente 'à vontade' mas o resultado parece ser surpreendentemente bom.

    Por cá há muita gente ignorante a opinar e a mandar, a fazer e desfazer, não há continuidade.

    Mas sobretudo, concordo, não há uma cultura de prestigiar o ensino. Eu era e sou - e escrevi várias vezes sobre isso lá no UJM - a favor das acções do Parque Escolar. Que as escolas fossem notáveis obras de arquitectura, que houvesse materiais de grande qualidade, que as escolas se tornasse pontos focais de valorização urbana, parece-me uma forma digna e prestigiante de olhar para as escolas (obviamente acho condenável se houve casos de abuso e acho ridículo que se tenham aceites regulamentos feitos pela Alemanha que obrigavam a equipamento de regulação térmica que, por cá, não faz sentido - mas isso são os peanuts que sempre aparecem para que alguns façam da árvore a floresta).

    Acho que a escola deverá ser, na região, o edifício fantástico onde todos tenham orgulho em estar. À semelhança do belo edifício da Biblioteca de Torres Novas que prestigia a cidade e, presumo eu, deva atrair mais pessoas do que se fosse um edifício conservador e soturno.

    Mas fartei-me de ouvir professores a criticarem as obras como se fosse luxo a mais. A atitude deveria ser a contrária. Querer mais para que todos sintam os edifícios escolares como espaços onde é bom estar, onde a população sinta orgulho em ter lá os seus mais novos.

    E acho que os professores se fecham (cada um no seu casulo), não trabalham em equipa, não se mobilizam em conjunto uns com os outros e com os alunos, não constroem em conjunto projectos educativos para tornar a escola mais arejada e mais apetecível.

    Posso estar a falar a partir de uma visão de fora mas é realidade que me interessa (tive até não há muito tempo filhos estudantes) e, como disse, tenho amigos professores (e a minha mãe é professora reformada). Claro que há casos e casos e claro que é uma realidade que sofre influências de toda a ordem, culturais, sociológicas, económicas, etc. Fixarmo-nos num ou dois aspectos é necessariamente redutor mas, enfim, num espaço deste tamanho também não dá para mais e, aliás, já escrevi mais do que a conta.

    Bom sábado e desculpe lá estar a 'moer-lhe' a paciência.

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    1. Houve e há, de facto, uma deriva proletarizante dos professores. Mário Nogueira é apenas o último de uma longa cadeia que entende o sindicalismo docente à luz de outros sindicalismos. Esta deriva à esquerda foi muito bem aceite ao centro, que, através do PS e do PSD, trataram de fazer coincidir a realidade com a ideologia sindical. Penso que todos ficam contentes. A proletários paga-se o menos possível, o que agrada ao centro e à direita, e isso cria ressentimento, o que traz um certo dinamismo à actividade dos sindicatos o que agrada à esquerda.

      Há um outro problema e que não é apenas um problema dos professores. Hoje em dia, muitos e muitos dos que saem das universidades têm uma visão tão limitada e paroquial quanto a tinham na hora que entraram. Isto afecta todas as áreas. Torna-se gritante, para alguns, quando toca o professorado. Espera-se algo de diferenciado dos professores. Haverá, porém, cada vez menos professores diferenciados, que transportem consigo um mundo e que exponham os seus alunos à diferença desse mundo. Isso viu-se já nas manifestações. Irá ser pior.

      A questão do trabalho em equipa. Essa é a ideologia dominante. Pessoalmente, acho que é puro sintoma da decadência. Aquilo que vou dizer contraria o espírito reinante. O trabalho docente tem qualquer coisa de artístico. A forma como se ensina e como se está numa sala de aula é perfeitamente singular. Exige um estilo, uma marca não partilhável. O que eu acho preocupante não é a falta de trabalho de equipa. O que eu acho absolutamente preocupante é que não seja valorizado o desempenhado individual, a singularidade, a diferença. Isto não quer dizer que os professores não troquem impressões e experiências. O trabalho de sala de aula é um trabalho solitário. O professor está ali sozinho com os seus alunos. Tudo depende dele e deles. A única equipa que conta é a que alunos e professores formam naqueles momentos. Esta é a grande tradição da escola ocidental, não me parece que seja a do trabalho de equipa. Depois, isso é completado pela responsabilidade pelo resultado dos seus alunos. Isto é uma longa discussão e eu sou muito conservador a este nível. Acredito apenas na minha responsabilidade individual.

      Apesar de não ser politicamente um liberal, a única coisa em que acredito é na liberdade e na responsabilidade de cada um. Na dos alunos e, antes deles, na dos professores. O professor deve ser deixado livre para trabalhar como entender (individualmente ou em equipa) e, depois, responderá pelo seu trabalho. Estou à vontade porque, durante muito tempo, tinha alunos em exame (hoje, graças ao consulado da Lurdes Rodrigues e apesar do exame de Filosofia se ter tornado possível, de forma opcional, já não tenho turmas que façam exame da disciplina) e sempre senti que os resultados deles eram, em primeiro lugar, responsabilidade minha. Conheço muitos professores que pensam exactamente como eu. Mas pertencemos a um mundo que já acabou.

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  3. Isto já está cá para trás e sinto-me uma maçadora mas quero explicar isto do trabalho em equipa. Não discordo do que diz mas não era nisso que eu estava a pensar.

    Fazendo uma analogia: uma empresa está organizada em Direcções e Departamentos e cada um é responsável pela sua área, não há margem para dúvida e, em cada um, é o responsável e os subordinados que 'reinam'. Mas se cada Direcção ou Departamento andarem por si, ignorando o que se passa nas restantes, a empresa será um conjunto de quintinhas fechadas, não irá a lado nenhum.

    Numa escola eu acho que é o mesmo. Na sala cada professor é o único responsável e deve exercer a sua arte de forma exclusiva e solitária. Isso está fora de questão.

    Mas, cá fora, eu acho que deveriam trabalhar em conjunto com os outros professores para, em conjunto, fora da sala, delinearem estratégias para motivar mais os alunos, puxarem por um ou por outro, lançarem desafios externos ao horário estrito das aulas para que todos se possam envolver em actividades em que façam uso das várias 'valências' que, supostamente, devem adquirir.

    Acho que, isso faz sentido de uma forma vertical, isto é os professores da mesma turma ou, de forma horizontal, isto é os vários professores da mesma disciplina, trocando experiências, discutindo metodologias que resultem mais ou menos, abordagens mais eficazes, etc.

    Trabalhar em equipa, neste sentido, seria alinhar objectivos, alinharem ou discutirem metodologias, debruçarem-se solidariamente sobre 'a matéria prima' (ie, os alunos), irem avaliando a prossecução dos objectivos, discutirem entre si as próprias matérias e as maneiras de as tornarem mais aliciantes. Mas fora da sala de aula.

    Poderiam, além disso, estabelecer momentos de trabalho conjunto, mas isso seriam apenas momentos, porque a regra deveria ser sempre as aulas normais.

    (Por exemplo, se arranjassem forma de, fora do horário das aulas, mobilizarem os alunos para fazer um projecto que, de alguma forma, abrangesse fazer um trabalho que tivesse componentes de física, de matemática, que tivesse que ser acompanhado por um texto escrito em mais que uma língua, discutido e avaliado do ponto de vista sociológico e filosófico, etc, e que os alunos tivessem um dia inteiro (ie, tomando o horário de 1 dia inteiro) para o apresentar.)

    Era isto que eu queria dizer. Mas penso que nada disto hoje faz sentido segundo a cultura vigente, em que o ensino é um exercício individual e conservador.

    Quanto ao resto que diz, concordo. As suas análises são sempre muito lúcidas e racionais.

    Por favor não se sinta na obrigação de responder. E uma vez mais peço desculpa pelo tempo de antena que lhe tomo... Vou tentar não dizer mais nada nos tempos mais próximos...

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    1. Há uma questão a que eu sou particularmente sensível: a da diferença radical entre uma empresa e uma escola. Eu sei que o conceito de organização é muito amplo, que abrange desde empresas a quartéis, igrejas, escolas, etc. Li bastante Peter Drucker. Mas não creio que se possa analogar. E é essa fonte de equívocos que gera muito ruído. Nas escolas, o principal ruído é o de os professores não saberem já qual é a sua verdadeira missão. Algumas ideias que propõe seriam, eventualmente interessantes, se as múltiplas realidades que formam a realidade escolar fossem outras. Não lhe vou dizer, publicamente, qual o pressentimento que tenho sobre os resultados delas se fossem aplicadas na situação real das escolas. Mas pode imaginar.

      Há uma coisa interessante na escola e que as pessoas não dão por isso. À escola e aos professores é-lhes pedido algo de paradoxal. Que sejam, ao mesmo tempo, conservadores e revolucionários/inovadores. Mas isto fica para um post sobre o assunto.

      De resto, esteja à vontade. Pode escrever quando quiser. Se não puder não respondo. Muito obrigado pela a atenção que vai dando ao Kyrie Eleison.

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